O maior atentado terrorista da história argentina – e segundo maior das Américas, só ficando atrás do tristemente célebre 11 de setembro de 2001, nos Estados Unidos – deixou feridas que não cicatrizam e voltam a sangrar, clamando justiça. Aquela segunda-feira, 18 de julho de 1994, amanheceu como um dia normal, ensolarada e um pouco fria. No centro de Buenos Aires, muitos já estavam trabalhando, outros tomavam café com medialunas nos bares e comentavam sobre futebol, uma das paixões argentinas.

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No dia anterior, a Seleção Brasileira sagrara-se tetracampeã, nos Estados Unidos, ao derrotar a Itália nos pênaltis. Esse foi o assunto que levou o jornalista Lasier Martins, da Rádio Gaúcha, a fazer uma entrevista ao vivo comigo, então correspondente de Zero Hora em Buenos Aires. Comentei que havia visto uma pelada de guris em frente ao edifício da Embaixada do Brasil, uns vestindo a camiseta amarela, outros a azul celeste ou qualquer cor, tudo misturado. Felizes. No mais, os argentinos ainda estavam melancólicos com a desclassificação precoce da sua equipe, nas oitavas de final, após um caso de doping do ídolo Maradona, que jogava sua última Copa.

Por volta das 10h, escutei a Rádio Mitre divulgar em poucas palavras que havia ocorrido um atentado contra a Associação Mutual Israelita Argentina (Amia): “É lamentável. Mais uma vez…”, anunciou o locutor. Para checar, liguei para a sede da instituição judaica. Nunca pude esquecer aquele desesperado som de “chama e ninguém atende”.

Foi então que a manhã, que eu imaginava morna, se transformou em um pesadelo. Saí do escritório da RBS, na Rua Reconquista, e peguei um táxi. Na Avenida Córdoba, depois do Obelisco, o trânsito incomum já refletia o drama que ocorria poucos quilômetros adiante.

Desci do automóvel e fui caminhando e correndo até a Rua Pasteur, 633. Às 9h53min, uma caminhonete Renault Trafic carregada com uma quantidade estimada entre 300 e 400 quilos de um composto de nitrato de amônio, alumínio, hidrocarboneto pesado, TNT e nitroglicerina explodiu em frente ao edifício da comunidade judaica, provocando a morte de 85 pessoas e ferimentos em outras tantas.

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Uma nuvem de pó pairava no ar. e a dor, muda

Cheguei à cena de guerra às 10h30min. O cadáver de uma mulher com uma roupa modesta, um vestido colorido, estava estirado na calçada, a uma centena de metros do local da explosão do carro-bomba, refletindo a insanidade do ato terrorista. Ela certamente estava passando por ali quando tudo aconteceu. O edifício era uma montanha de escombros, e uma dezena de pessoas já se dedicava a buscar sobreviventes. Uma nuvem de pó pairava no ar. E a dor, muda.

Aproximei-me o mais que pude para, depois, poder escrever. Ao mesmo tempo, imagens de pessoas que conhecia vinham martelando a minha cabeça. Estariam mortos? A angústia seria em parte sanada nos dias seguintes da cobertura.

Traumatizados e desconfiados, talvez tenham julgado mal o sorriso no canto dos lábios que esbocei ao revê-los. Quem eu nunca mais vi sorrir foi a jovem Marisa Raquel Said. Tinha uns 21 anos e trabalhava na recepção da Amia. Talvez a sua última imagem na Terra tenha sido a aproximação suspeita da Trafic.

Foi ela quem me atendeu, simpática, meses antes, quando fui fazer uma reportagem sobre os nazistas na Argentina. Os arquivos estavam lá, no quinto andar. Vi documentos de vários deles, como o médico de Auschwitz, Josef Mengele, que morou a algumas quadras do Obelisco, quando chegou à Argentina de Perón, ocupou outras residências em suas constantes fugas até que morreu em Bertioga (SP).

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Dois anos antes da Amia, em 17 de março de 1992, a Argentina havia sofrido outro atentado terrorista, que destruiu a embaixada de Israel, na Rua Arroyo, centro, matando 22 pessoas. “Por que a Argentina na rota do terror internacional?”, se perguntava. Também tive a oportunidade de fazer a cobertura para ZH desse evento, que permanece impune.

Desde aquela época, já circulava entre a imprensa que o Hezbollah, a serviço do Irã, estava por trás de tudo. Procurei várias vezes ouvir uma autoridade do Irã em Buenos Aires, Mohsen Rabbani, conselheiro cultural da embaixada. Ele nunca atendeu: fugiu do país e tem mandado de prisão da Interpol. Na denúncia de Alberto Nisman, Rabbani é acusado de participar das negociações comerciais com as autoridades argentinas envolvidas no plano macabro. Ele interveio, escreveu o promotor, para garantir a própria impunidade. O ciclo se fecha?

* Hamilton Almeida foi correspondente de Zero Hora em Buenos Aires de 1994 a 1995