A morte do promotor federal Natalio Alberto Nisman instalou a maior crise política nos 11 anos de governo do casal Kirchner. Desde a madrugada de segunda-feira, os argentinos se debatem em torno de uma dúvida que já ganha contornos de mistério: foi suicídio ou assassinato?

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Mas quem era Alberto Nisman – preferia não ser chamado de Natalio -, encontrado morto com um tiro na cabeça no apartamento onde morava, no elegante bairro de Puerto Madero, em Buenos Aires? Aos 51 anos, divorciado, pai de duas filhas, portava-se como um portenho de hábitos singulares. No exercício da profissão, mostrava-se em ternos sóbrios, as gravatas com detalhes em azul (cor símbolo do país), nos tons claro ou escuro. Considerado um promotor corajoso, não aliviava com os poderosos à margem da lei.

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Na vida privada, Nisman mudara de estilo. Devido a uma lesão lombar, abandonara as corridas. Estava maravilhado com os efeitos do método zen de se exercitar. Quase todos os dias, concentrava-se como um monge no ritual da respiração hindu: inalar, reter o ar e exalar. Quando a agenda permitia, tratava de seguir os ensinamentos do livro A Arte de Viver.

Era de família abastada o promotor que morreu às vésperas de apresentar denúncia contra a presidente, Cristina Kirchner, em razão do atentado terrorista contra a sede da Associação Mutual Israelita Argentina (Amia), em 1994, na capital do país. O pai, empresário do ramo têxtil, patrocinou o curso de Direito na Universidade de Buenos Aires. Estudioso, tinha notas acima de oito.

No condomínio onde Nisman vivia, o Le Parc Puerto Madero, o clima é de consternação. Uma pequena faixa, afixada na guarita de entrada com cadarços de tênis, expõe um clamor: “Justiça”. Num dos postes, hastearam a bandeira nacional a meio pau, em sinal de luto. O automóvel do promotor, um Audi, está à vista, exibindo o lacre de apreendido da Polícia Federal.

O carro do promotor exibe adesivos de “apreendido” (FOTO: Carlos Macedo)

Os vizinhos de Nisman saem apressados das torres residenciais, levando seus cães, sem olhar para os repórteres diante do condomínio. Na manhã de sexta-feira, ao ser abordada, uma jovem parou e tirou os fones de ouvidos para conversar. Quando soube do assunto, desculpou-se.

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– Sinto, não quero falar.

A carreira de Nisman deslanchou justamente durante o governo do clã Kirchner. Em 1997, era apenas um dos promotores que investigavam o atentado contra a Amia, que deixou 85 mortos. Em 2004, o recém-empossado Néstor Kirchner o designou para chefiar as apurações, com plenos poderes.

Nisman havia sido designado em 2004 por Néstor Kirchner como promotor especial para o caso AMIA (Foto: Marcelo Capece/AFP)

Nisman foi a fundo. Logo descartou uma eventual participação da Síria, apostou que as bombas contra a instituição judaica foram acionadas por criminosos do Irã. Em 2008, surpreendeu o país ao pedir a detenção de ninguém menos que o ex-presidente Carlos Menem. Acusação: obstruir as investigações e fabricar provas falsas.

Foi a partir daí que o promotor começou a colecionar inimigos ocultos e a se enredar na teia de intrigas que move a política argentina. Disseram que tentou inculpar Menem para cair nas graças de Cristina Fernández de Kirchner, a sucessora do marido, Néstor. O objetivo, segundo os maledicentes: conquistar a chefia da Procuradoria Geral da Nação.

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O promotor, porém, mostrou que não era manipulado pelos cordéis do kirchnerismo. Afastou-se de Cristina quando o governo firmou um pacto com o Irã, em 2013. Entendeu que a mandatária pretendia encobrir os autores ideológicos do atentado antissemita, em troca de compensações econômicas por parte de Teerã.

O escritório de Nisman, na Promotoria Federal do Caso Amia, é vizinho ao gabinete de Cristina na Casa Rosada. Ambos estão de frente para a Praça de Maio, no coração de Buenos Aires. Soldados com armas pesadas guardam o local.

Os colegas de Nisman também emudeceram, pelo menos na sexta-feira, quando foram procurados. Porteiros esclareceram que nenhum jornalista poderia entrar no prédio. Os promotores estão estarrecidos com a morte, que ocorreu quando faltavam 12 horas para Nisman denunciar a presidente Cristina e o seu chanceler, Héctor Timerman, no Congresso Nacional.