Jorge Bergoglio se transformou em Francisco dando sinais quase de rebeldia. Quando estava prestes a acenar pela primeira vez para a multidão de fiéis na Praça de São Pedro, recusou a estola vermelha que caracteriza a pompa papal. “O Carnaval acabou!”, teria dito ao mestre de cerimônias do conclave. Desde então, o papa argentino revelou um jeitão irreverente para um bispo de Roma, o de cultuar a simplicidade.
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>>> Leia o que diz a encíclica do papa Francisco
Assim, Francisco ficou pop – em 115 dias de pontificado, ganhou 4,5 milhões de novos seguidores no Twitter e conseguiu renovar o interesse do mundo pela Igreja -, mas sua revolução ainda está na promessa. Ontem, em um dia histórico no Vaticano, no qual autorizou a canonização de João Paulo II (1978-2005) e de João XXIII (1958-1963), ele também publicou sua primeira encíclica, uma espécie de guia do pensamento da Igreja. Nela, de inovador, só a forma, por ter sido a primeira escrita a quatro mãos. O conteúdo segue o pensamento de Bento – a referência mais polêmica que se pode considerar no texto, em um momento no qual o mundo fala em casamento gay, é a afirmação de que o casamento é apenas entre um homem e uma mulher.
A encíclica Lumen Fidei (Luz da Fé) deveria ser parte de uma série de Bento XVI sobre as virtudes teológicas, somando-se a textos anteriores sobre o amor e a esperança, mas ficou incompleta com a sua renúncia. Francisco terminou o texto, assinou e divulgou, em ato considerado uma gentileza ao seu sucessor.
– Não é uma encíclica sobre a organização da Igreja, uma análise da sociedade, é um aprofundamento da questão da fé – explica Luiz Carlos Susin, professor de Teologia da PUCRS.
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Ainda assim, o fato de Francisco ter assumido o texto como seu demonstra profunda sintonia entre os dois pontífices. Essa é a análise de vaticanistas italianos, como Andrea Tornielli, do jornal La Stampa. Eventuais lacunas de Francisco no que diz respeito à doutrina segundo análises na imprensa italiana, podem indicar que seu estilo mesmo é ser menos intervencionista sobre questões éticas.
A “surpresa” de ontem ficou por conta da canonização de João XXIII – pelos serviços prestados, dispensando a comprovação de um milagre. O chamado “Papa bom”, Angelo Giuseppe Roncalli, é tido como o pai da renovação da Igreja Católica. A canonização de Karol Wojtyla era previsível, embora ocorre em tempo recorde, oito anos após sua morte. A data ainda não está marcada, segundo o Vaticano.
À espera de mudanças
Em sua gestão, a cúpula do Banco do Vaticano caiu por suspeita de desvio de dinheiro, mas fora isso, mudanças administrativas são esperadas apenas para outubro, quando ele deverá mexer na Cúria Romana. Renovações ousadas como a discussão do celibato, da condenação ao uso de anticoncepcional, por exemplo, não aparecem no horizonte. Crítico do comportamento da Igreja, o escritor José Hildebrando Dacanal lamenta que Francisco não tenha feito “um tratamento de choque”:
– Ele está perdendo oo tempo para mudanças. O início foi muito bom, foi muito acertado, mas à medida que o tempo passa, parece que ele está se revelando sem condições estruturais, talvez, de tomar decisões, de demonstrar pulso. Ele parece agir até agora como um amortecedor de questões.
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Para o professor Eduardo Hoornaert, um dos fundadores da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina (Cehila), o talento do Pontífice para lidar com o público não é o mesmo para lidar com questões políticas.
– Até agora Francisco não fez nenhuma ação decisiva em uma certa direção, como fez o Papa João XXIII, que convocou os cardeais em apenas dois meses. Vamos descobrir ainda se Francisco não tomou atitudes por prudência ou falta de coragem. Ainda não consigo dizer qual é o norte que guia Francisco.
A favor do Pontífice, segundo Hoornaert, ainda na comparação com a chegada de João XXIII, é que, naquela época, o Vaticano não enfrentava problemas com corrupção ou pedofilia.
*Colaborou Conrado Esber, especial