A tristeza que se abateu no Canto Grande, bairro de Bombinhas, litoral Norte, com a morte de um jovem em fevereiro justifica o quanto a farra do boi ainda deve ser encarada como uma realidade que tira vidas e causa sofrimento até mesmo nas pessoas acostumadas com a tradição, considerada crime desde 1997.
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No fim de semana, houve novos registros da prática em Governador Celso Ramos, Florianópolis (Ponta das Canas) e Itapema. Nos três casos, os animais foram encontrados feridos.

O “mano nota mil”, como conhecidos o definiam, era o pescador Jamisson Amarildo dos Santos, de 25 anos, lembrado com carinho em Bombinhas. No dia 24 do mês passado, uma quarta-feira à noite, ele saiu para participar de um churrasco como costumava fazer nos intervalos do trabalho em alto mar e não voltou mais para casa.
O rapaz foi ferido por uma chifrada de um boi em uma área de mata fechada dentro do Morro do Resgate, que fica perto da praia da Conceição e do Morro do Macaco. Naquela noite, dezenas de jovens haviam se reunido para — como de costume nesta época da Quaresma — comer carne, beber cerveja e depois correr atrás do animal.
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Após três dias internado, com ferimentos no tórax e rim, Jamisson não resistiu e faleceu. Amigos e alguns familiares aceitaram conversar apenas informalmente com o Diário Catarinense a respeito e contaram que ele já havia perdido um tio na farra do boi.
A morte de fevereiro ainda gera um clima de luto em Bombinhas, numa comoção inevitável diante da forma precipitada em que o jovem perdeu a vida. A reportagem não conseguiu localizar a mãe, que teria viajado.
No Canto Grande, 12 pessoas foram indiciadas pela Polícia Civil em 2015 numa investigação que identificou suspeitos de envolvimento com a farra do boi — o inquérito corre em segredo de Justiça e a polícia não divulgou nomes. Um deles é um irmão de Jamisson, conforme a Polícia Civil, e que a reportagem não conseguiu encontrar. Eles foram indiciados por crimes de maus tratos a animais, associação criminosa e corrupção de menores.
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Inquérito parado
A investigação enviada em junho ao Fórum de Porto Belo, que julga os crimes de Bombinhas, está há nove meses praticamente parada na Justiça. O Ministério Público informou que houve uma suposta distribuição equivocada no envio para outra promotoria a qual não tem atribuição para atuar no caso.
A promotora Lenice Born da Silva disse por meio da assessoria que solicitará vista dos autos ao cartório da 2ª Vara e após análise dos fatos decidirá se oferecerá denúncia, pedirá novas diligências ou o arquivamento.

Investigadores constataram a incidência recorrente da farra na Quaresma em Bombinhas, assim como acontece no litoral catarinense. Há dificuldade no combate não só pela falta de efetivo, mas pela organização dos farristas: criam grupos reservados no WhatsApp para juntar o valor da compra do animal, analisam o meio de transporte, o local em que o animal ficará preso até a data e aonde ocorrerá a farra, geralmente tarde da noite e início da madrugada em meio à mata fechada.
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Professor de Direito Penal e especialista em criminologia, Alceu de Oliveira Pinto Júnior, 52 anos, lembra que a farra do boi expõe pessoas ao perigo, sejam elas participantes ou espectadoras. Nos últimos anos, há dezenas de casos de pessoas feridas ou até mortas no Estado em ocorrências com boi.
Para o professor, a lei de crimes ambientais trouxe a conscientização de que a prática causa maus tratos e sofrimento aos animais:
— Há um conflito de gerações que não passou por isso, que não mede evoluções. A minha geração, por exemplo, saía matar passarinho com espingarda de pressão. Hoje isso é uma prática inaceitável, que nem se imagina. A farra do boi também é assim e acredito que ao longo dos anos vai haver evolução e conscientização ecológica das pessoas, uma nova cultura — pensa Alceu, destacando, por outro lado, a existência de hipocrisia na sociedade em relação aos rodeios, eventos que são liberados.
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Redes sociais
Por celular e computador, a tecnologia tem sido aliada dos organizadores da farra para se comunicarem em grupos nas redes sociais. Em Bombinhas, os mais populares eram o Farra do Boi e Raspa Língua, este último em alusão a como ficam lanhados os participantes após encarar a mata fechada.
Nas mensagens vistas pela reportagem constam termos e expressões de empolgação, tais como: “Aê tá escolhido”, “Brabo, é só o melhor”, “Esse nós caprichamos”.
A polícia reuniu fotografias de farras divulgadas na internet, onde jovens aparecem consumindo álcool, tido como um dos impulsionadores para o comportamento. Os investigadores descobriram que cada boi tem um preço alto: R$ 4,5 mil, angariado em mutirões de amigos e vendido sem o brinco, o equipamento que identifica a origem do animal.
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“Tá no sangue”
Nos depoimentos policiais e em conversas informais que a reportagem teve com jovens que se disseram farristas, é usual a expressão “tá no sangue” quando indagados do motivo para cultuarem uma prática que é crime.
_ Desde pequeno fui educado a cultuar essa farra _ disse um deles, enquanto outro destacou:
_ Está no meu sangue.
Entre os participantes foram identificados mulheres e adolescentes. Houve quem relatasse ameaças a quem dedurasse, que ao final o boi geralmente é morto e casos de pessoas que conhecem mortes a respeito.
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PM reforça policiamento em Governador Celso Ramos
Principal reduto de farristas em Santa Catarina, Governador Celso Ramos, na Grande Florianópolis, já conta com reforço da Polícia Militar para a prevenção.
Na noite de sábado e madrugada de domingo, a Polícia Militar enviou tropas, entre elas a do Choque, para o bairro Areias de Baixo. O boi foi solto às 23h. Segundo policiais, há suspeita que os envolvidos estavam alcoolizados, mas ninguém foi preso. Moradores que não quiseram se identificar negaram violência contra o animal e afirmaram que a PM foi quem o feriu ao disparar balas de borracha.
Este ano, a polícia suspeita que a prática em Bombinhas migre para Governador Celso Ramos justamente por causa do luto da morte de fevereiro. Outra preocupação da polícia, conforme o Diário Catarinense apurou, é da ocorrência em bairros do Norte da Ilha, em Florianópolis, como Ingleses, Santinho e Ponta das Canas.
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Em Itapema, um boi foi resgatado no sábado. A suspeita é que tenha sido usado em farra à noite. Em Florianópolis (Ponta das Canas), o boi encontrado amarrado na praia, no sábado, estava ferido e exausto.
Crime
A farra do foi proibida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 1997 devido aos maus tratos contra os animais, fato que constitui crime previsto na Lei de Crimes Ambientais (Lei n° 9.605/98). A pena vai de três meses a um ano de detenção.
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