Pouca gente em Florianópolis sabe quem foi Ylmar Corrêa. Acrescido do título de doutor, seu nome batiza uma rua residencial tranquila de 150 metros no bairro Santa Mônica. Em 1953, porém, ele era notícia na cidade – e não por algum feito na profissão em que havia se formado no Paraná em 1939. Deputado estadual pelo Partido Social Democrático (PSD), o médico assinava o projeto de emenda à Constituição catarinense que, se aprovado na Assembleia Legislativa (Alesc), estabeleceria a primeira eleição direta para prefeito da Capital.

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O registro mais antigo da participação dos conterrâneos de Corrêa na escolha dos administradores locais datava de 1726. Naquele ano, a Ilha de Santa Catarina se desmembrou de Laguna e virou a Vila de Nossa Senhora do Desterro. Sob a presença do ouvidor de Paranaguá (PR), Antônio Alves Lanhas Peixoto, realizou-se então o que as Ordenações do Reino – conjunto de leis seguidas por todas as colônias portuguesas até 1828 – chamavam de ¿eleições por pelouros¿ para definir quem mandaria na localidade.

O sistema consistia na convocação de ¿homens bons¿ para elaborar uma lista de pessoas aptas a representar a comunidade. Os nomes mais citados eram escritos em pedaços de papel, envoltos em bolas de cera e colocados em uma arca. ¿Os sorteados deveriam servir aos cargos pela ordem de sorteio, havendo ainda uma série de disposições que deveriam ser obedecidas para que se evitasse a formação de qualquer oligarquia¿, escreveu o historiador Oswaldo Rodrigues Cabral no livro Nossa Senhora do Desterro – Notícia.

“Dormi prefeito e acordei palhaço”, disse Manoel de Menezes ao saber que perdia a primeira eleição para prefeito em Florianópolis

Na ocasião, foram eleitos o juiz Domingos Lopes Sertão, o vereador Francisco Martins Pereira e o procurador Antônio de Castilho. Quando Corrêa apresentou sua proposta, mais de 228 anos depois da fundação da cidade, no entanto, nem com o acaso os florianopolitanos podiam mais contar: desde os tempos do Império, passando pela República e pelo Estado Novo, os prefeitos das capitais, das estâncias hidrominerais e das cidades consideradas relevantes para a segurança nacional eram indicados pelo governador e ponto final.

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— Na presidência de Gaspar Dutra, mesmo com a Constituição Federal de 1946 tendo acabado com a ditadura de Getúlio Vargas, alguns municípios continuaram sem eleição direta — explica o professor Jali Meirinho, do Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina.

Era a situação de Florianópolis, mantida entre 18 cidades declaradas ¿bases ou portos militares de excepcional importância para a defesa externa do país¿. No Estado, somente São Francisco do Sul também entrava na relação, que incluía ainda Porto Alegre e as gaúchas Rio Grande, Santa Maria, Gravataí e Canoas, além de São Paulo. Em agosto de 1953, a lei no 1.953 excluiu Guarulhos (SP) e as duas catarinenses dessa classificação. Estava aberto o caminho para os manezinhos conquistarem o direito de votar para prefeito.

O jornal O Estado, ligado aos pessedistas Aderbal e Nereu Ramos, abraçou a causa com entusiasmo. A ¿batalha pela autonomia¿, como o veículo se referia à questão, era a oportunidade para o partido emplacar o sucessor de Paulo Fontes, alçado à chefia do Executivo municipal em 1951 pelo governador Irineu Bornhausen, ambos da União Democrática Nacional (UDN). Não seria por falta de apoio que perderia essa chance: a cada dia, líderes estudantis, empresários, parlamentares e cidadãos comuns revezavam-se em suas páginas mostrando-se favoráveis à ideia.

Na sessão de 16 de setembro, finalmente o projeto de Ylmar Corrêa foi ao plenário da Alesc. Dos 39 deputados, 30 disseram sim. Os únicos três contrários foram os udenistas Oswaldo Rodrigues Cabral (sim, o historiador), Clodorico Moreira e João José de Souza Cabral. A ¿batalha pela autonomia¿ havido sido vencida. Mas a guerra pela prefeitura de Florianópolis estava apenas começando.

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QUATRO CANDIDATOS E UM DESTINO
A expectativa era de que, como na política estadual, a polarização entre o PSD dos Ramos e a UDN dos Konder Bornhausen seria reproduzida no pleito municipal. Mas as opções para os cerca de 30 mil eleitores de Florianópolis em 3 de outubro de 1954 não se limitavam aos candidatos dos dois partidos:

JOÃO JOSÉ CABRAL – Em segundo mandato consecutivo na Assembleia Legislativa, o advogado foi o nome lançado pela UDN. Por ironia, como deputado havia votado contra o projeto que permitiu a eleição direta na Capital. O Diário da Tarde, ligado ao partido, anunciava a ¿extraordinária repercussão e entusiasmo¿ pela escolha, saudando-o como ¿uma pessoa de dignificante envergadura moral, de ampla compreensão social, de profunda cultura e dotada de um patriotismo sadio, elevado e realizador¿. Por acompanhar o prefeito Paulo Fontes e o governador Irineu Bornhausen em inaugurações de obras, era acusado de uso da máquina pública.

LOPES VIEIRA – Alagoano, marcou época na Força Pública do Estado desde que chegou a Santa Catarina como 2o sargento, aos 31 anos, em 1920. Em menos de cinco anos, ascendeu ao comando da corporação. Encarregado pelo governador Adolfo Konder (1926-1930) de abrir a estrada até o Norte da Ilha, inaugurou o Hotel Balneário Canasvieiras em 1930. Pelo PSD, foi o segundo deputado estadual mais votado de 1947. Em 1954, já no Partido de Representação Popular (PRP), tentaria voltar via eleição direta à prefeitura, cargo que havia exercido por nomeação em 1945 e entre 1946 e 1947.

MANOEL DE MENEZES – Nascido em 1924 em Lauro Muller, mudou-se criança com a família para Florianópolis. Na tipografia do pai, pegou gosto pela imprensa. Primeiro, como jornaleiro. Depois, escrevendo em A Gazeta, Diário da Tarde e O Estado, até fundar o jornal A Verdade, auto-intitulado ¿o semanário mais lido e discutido de Santa Catarina¿. Polêmico, não poupava quem estivesse no poder – a não ser que houvesse algum ¿acordo¿. Com linguagem popular (e, às vezes, chula), publicava as reclamações dos leitores contra o poder público, o que lhe garantiu notoriedade. Candidatou-se pelo Partido Trabalhista Nacional (PTN), o mesmo de Jânio Quadros.

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OSMAR CUNHA – Para tirar a UDN do poder em Florianópolis, o PSD confiava em um funcionário do Banco do Brasil, que ingressou na política como vereador em 1951. Em 1953 depois de ser o líder da maioria na Câmara, licenciou-se para chefiar a Fiscalização Bancária de Santa Catarina. Apesar de nascido e crescido na cidade, envolvia-se com questões nacionais e até continentais. Representou o país na Conferência Interamericana de Comércio e Produção em Lima, onde propôs a formação de um bloco latino-americano. Presidia a Associação Brasileira de Municípios quando, aos 36 anos, foi indicado como candidato a prefeito pela Aliança Social Trabalhista, em coligação com o PTB.

Confeitaria do Chiquinho era ponto de encontro no Centro da Capital Foto: Casa da Memória / Divulgação

Florianópolis vivia clima de rivalidade na política  e nos gramados

Em 1954, a rivalidade política dividia Florianópolis. Pessedistas eram avaianos nos gramados, torciam pelos Martinelli nas raias, se divertiam-se no clube Doze de Agosto, batiam ponto no Café Nacional e liam O Estado. Udenistas ficavam sabendo das últimas pelo Diário da Tarde, encontravam-se no Café Rio Branco, frequentavam o Lira Tênis Clube, saudavam os remadores do Aldo Luz e defendiam o Figueirense. Uns e outros só esqueciam as diferenças na Confeitaria do Chiquinho (na esquina da Felipe Schmidt com a Trajano, atual Livrarias Catarinense): apesar da inclinação do proprietário pelo PSD, ninguém dispensava as empadas de camarão servidas no local.

Peculiaridades de uma Capital que, com o primeiro Plano Diretor, pretendia se modernizar a partir da verticalização do Centro, da expansão turística, da ampliação da malha viária e da retomada da atividade portuária. Na prática, o projeto elaborado pelo urbanista Edvaldo Pereira Paiva e os arquitetos Demétrio Ribeiro e Edgar Graeff nunca foi adotado conforme o planejado. Mesmo assim, iniciou-se um período de obras que transformaram a paisagem local, como a abertura da Avenida Rio Branco, a construção de grandes edifícios (Banco Nacional do Comércio, Caixa Econômica Federal, Palácio das Diretorias) e a inauguração do prédio da seguradora Sul América. 

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Por trás da faceta desenvolvimentista, porém, persistiam problemas de décadas, principalmente em infraestrutura. Iluminação pública, esgotamento sanitário, abastecimento de água e transporte coletivo ainda eram precários. Era para governar essa cidade de contrastes que os quatro candidatos iriam mover mundos e fundos. 

“Dormi prefeito e acordei palhaço”, disse Manoel de Menezes ao saber que perdia a primeira eleição para prefeito em Florianópolis

Foto: Arte_DC / Agência RBS