Ao receber das mãos da filha, Vera Lúcia, uma taça de espumante para ilustrar a sessão de fotos, dona Eneida observa desconfiada o líquido dourado.
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– Qual é o problema desse champanhe? Está com poucas borbulhas!
A abertura precoce da garrafa, antes que a bebida estivesse gelada, provocou a inibição do perlage. Com o resfriamento, as borbulhas reapareceram. O episódio teria sido insignificante, se não revelasse a perspicácia da senhora quando o assunto é a sua bebida predileta. No momento em que pousou os pequenos olhos verdes na taça, deu logo o diagnóstico. E não sossegou enquanto não saboreou o conteúdo da garrafa na temperatura certa, borbulhante como deve ser.
Para Eneida Peterlongo Franciosi, de 85 anos, espumante é mais do que um hábito, um hobby ou um prazer. É toda sua vida. Neta e filha dos homens que inauguraram a arte de fabricar a bebida no Brasil, ela carrega no nome e no coração essa herança.
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Para contar a história de Eneida é necessário voltar ao último ano do século 19, quando o imigrante italiano Manoel Peterlongo, seu avô, chegou a Garibaldi. Nos anos seguintes, começou a produzir espumantes com as uvas que plantava, seguindo o mesmo método utilizado na região francesa de Champagne. Em 1913, ganhou uma medalha de ouro na primeira exposição de uvas de Garibaldi com o seu champanhe. E nasceu assim, oficialmente, o espumante brasileiro. Em 1915, Manoel fundou o Estabelecimento Vinícola Armando Peterlongo, batizado em homenagem ao seu primogênito.
Dar o nome do filho à vinícola deu sorte. Nas mãos de Armando, a Peterlongo cresceu. Passou a fabricar em grande escala e a aprimorar ainda mais a qualidade dos produtos. Foi a primeira vinícola brasileira a empregar mulheres e a empresa pioneira na região a pagar o salário mínimo aos trabalhadores, nos anos 1930.
Enquanto a vinícola prosperava, as duas filhas de Armando iam crescendo na casa construída em cima da cantina. Na hora do almoço, o pai chegava em casa com amostras de vinho base para trocar ideias com a mulher antes de fazer os cortes dos espumantes.
– Eu e a minha irmã tínhamos sempre que provar. Papai dizia que tínhamos que aprender a saborear o champanhe – comenta Eneida.
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As duas também brincavam de enxertar parreiras. Mas que brincadeira é essa?
– Papai nos ensinou a enxertar as mudas na época do plantio. Ele achava que tínhamos que saber de tudo. E aquilo para nós era uma diversão.
Dessa relação estreita com a bebida nasceu a grande paixão de Eneida. Antes de casar-se, trabalhou com o pai na empresa, fazendo as funções de enóloga. Depois do casamento, preferiu cuidar da casa e criar as quatro filhas, enquanto o marido tomou o seu lugar ao lado de Armando, na administração.
Ao contar detalhes sobre a história e o processo de fabricação da bebida, Eneida faz questão de chamá-la de champanhe. Foi assim que seu avô e seu pai chamaram o líquido desde sua origem. Na década de 1970, três maisons francesas abriram um processo para que as vinícolas brasileiras parassem de chamar assim os seus vinhos, já que “Champanhe” é a denominação de origem dos espumantes fabricados por lá. O Supremo Tribunal Federal entendeu, no entanto, que a Peterlongo, por ter chamado assim seus vinhos antes do estabelecimento da Indicação de Procedência na França, poderia continuar utilizando essa designação.
Para dona Eneida, a bebida da sua vida é, e sempre será, simplesmente champanhe. É assim que ela chama o líquido que presenciou todos os melhores momentos da sua vida, desde os almoços de degustação ao lado dos pais até o dia do casamento.
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– Meu bolo de casamento foi feito em Porto Alegre e chegou de trem a Garibaldi. Para acompanhá-lo, oferecemos somente uma taça de champanhe. Foi lindo.
Na cerimônia de 1947, Eneida e Ivo celebram com champanhe a união que durou a vida inteira
Enquanto o marido, Ivo, viveu, eles tiveram o hábito de almoçar com uma garrafa, que degustavam enquanto a conversa corria solta. Hoje, viúva há dois anos, Eneida desfruta seu champanhe em ocasiões em que pode reunir pelo menos parte da família composta por 11 netos e nove bisnetos. Quando os pequenos estão presentes, ela repete a brincadeira do passado:
– Tenho umas tacinhas pequeninhas guardadas. Quando eles vêm, sirvo um pouquinho de champanhe e dou a eles, para que aprendam a saborear.
– A vida de quem bebe champanhe é mais feliz!
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