Lídio Augusto Costa é um homem de poucas palavras. A língua que ele fala é outra. Para encontrá-lo, siga o samba. Mas não o procure entre os rostos: procure entre os pés. A conversa do homem de 77 anos, que desde que se lembra está envolvido com o samba em Florianópolis, é calma. Aliás, essa poderia ser sua principal característica, não fosse a dança. Lidinho até tenta ser discreto. Tem um jeito tímido, de quem não gosta de chamar atenção. Mas basta a primeira batida para se transformar.

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— Parece que me dá uma comichão no pé — ele resume.

É como se a música se apoderasse do seu corpo. Começa com sutis batidas dos pés no chão, e leves chutinhos para a frente. Logo toma conta, o que se percebe quando os ombros vão para cima e para baixo e a cabeça pende para os lados. Tem um jeito próprio de sambar. E é assim que melhor se expressa. No rosto, enquanto dança, carrega um sorriso que às vezes vira gargalhada.

— Não dá pra sambar sem sorrir — ele garante.

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(Foto: Diorgenes Pandini / Diario Catarinense)

Foi com a mãe, Maria Gentil, que Lidinho aprendeu sobre o samba. O pai, de quem herdou o nome, não dançava, mas tinha outras funções:

— O meu pai saía atrás da bateria da escola de samba com a sacola de baquetas, que se alguém derrubasse, ele já entregava, pro samba não parar.

A mãe, “ah, como dançava”. Tanto que, até os 80 anos ainda saía na ala das baianas nos desfiles na Nego Quirido. Sambou até morrer. A família era toda envolvida com Carnaval, mais especificamente com a Embaixada Copa Lord. Mas Lidinho já saiu também por outras escolas e mantém boa relação com as agremiações:

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— Onde eu vou, sou bem recebido.

O mais velho entre oito irmãos, Lidinho nasceu na Coloninha, comunidade da região continental da Capital. Ainda criança, a família se mudou para o Morro do Céu, na Ilha. Mas depois de casar, Lidinho voltou para o Continente, e mora até hoje perto da cabeceira insular da ponte Hercílio Luz, no Estreito. Foi lá que virou pai de quatro filhos, teve quatro netos, e acumula mais de meio século de casamento com Zonilda, que conheceu — como não poderia deixar de ser — numa roda de samba.

“Mais paradinha”, Zonilda chamou atenção do homem de estatura baixa, de sorriso largo, pela discrição. Lidinho podia ser considerado, até então, um namorador. Mas nela, viu a mulher com quem queria se casar, com quem “não daria briga”. E nunca deu. Tanto que, apesar de não o acompanhar, Zonilda não se importa com as tardes e noites que o marido investe no samba. E o sambista também toma cuidado para que nada preocupe a esposa. Das rodas de samba, volta para casa. E até sai menos para ver os jogos do Avaí, ironicamente o time de coração de um manezinho do Continente.

— Eu gosto de samba, futebol, e outras coisas que não posso dizer — brinca, aos risos.

UM AVAIANO DO CONTINENTE

(Foto: Diorgenes Pandini / Diario Catarinense)

A escolha pela camisa azurra se justifica por um fato que Lidinho não guarda com rancor, garante. Ele cresceu vizinho ao campo do Figueirense. Todas as crianças da Coloninha costumavam brincar ali. Mas um dia, Lidinho não pode entrar em uma festa do clube. O motivo, ele explica com um toque na pele, e falando baixinho, lamenta:

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— Era por causa da cor.

Afastou-se do Figueirense, mas nunca revelou o preconceito sofrido ao pai, alvinegro. Nem a amigos que torciam para o time da região continental.

— Meu pai morreu e eu nunca falei nada. Podia dar confusão.

Do lado de lá da ponte, ouviu falar de outro time que tinha bastante gente torcendo. E foi vê-lo jogar.

— A camisa era azul e branca, eu gostei da cor — resume.

E assim, virou avaiano. Só vai menos aos jogos hoje porque “dá muita confusão”. E, se tem uma coisa que Lidinho não gosta, é disso. Quando vai aos jogos, sai 10 minutos antes do fim pra evitar a multidão.

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O aposentado quer sossego. É que a vida foi bastante agitada. Lidinho começou a trabalhar aos 15 anos para ajudar na renda da família. O primeiro emprego foi numa loja de eletrodomésticos do centro da cidade, onde entregava as encomendas. Depois, trabalhou na Casan até se aposentar, entregando faturas nas empresas.

— Trabalhei 35 anos e 21 dias — conta.

Lidinho teve uma infância difícil, mas não gosta de falar sobre pobreza, não lembra de nada que lhe faltava. O que recorda mesmo é que, desde criança, se destacava no samba. Ia para as “domingueiras” e lá já ganhava concursos de passista.

— Daquela época até hoje eu tô dançando.

Só fecha o semblante quando questionado sobre que arrependimento guarda: queria ter estudado. Mas até isso ficou no passado, o Lidinho não pretende recomeçar. Além disso, não há mais nada que gostaria de ter feito e não fez. Casou-se com a mulher que ama, tem filhos e netos sempre por perto, ouve e dança samba com eles. Tem a saúde em dia, não precisa de remédios, não tem nenhum problema grave. É conhecido e respeitado na cidade e “até lá fora”.

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— Por onde eu vou, alguém acena. Eu cumprimento às vezes sem nem saber quem é — brinca. E é por causa desse “assédio” que Lidinho está sempre na estica. Calça social, sapato de sambista, camisa colorida, chapéu — que nunca cai na cabeça. Ele cuida da conservação das roupas e das cores, para que tudo combine. No pescoço, um cordão de ouro. Anel com pedra vermelha em um das mãos. Pulseira dourada na outra. Antes de sair de casa, verifica com a esposa se está tudo alinhado. E então, vai para rua. Ele nunca se atrasa.

— Muita gente pede pra tirar foto comigo, então preciso estar bem — explica, com a frase que, vinda de qualquer um, poderia soar como pretensiosa. Mas não vinda dele.

“DEIXA A VIDA ME LEVAR”

Quem vê um sambista assim, das antigas, espera que, ao falar de música, Lidinho se refira a artistas do passado como suas referências. Mas seu gosto é bem atual. Ouve Martinho da Vila, Zeca Pagodinho.

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— Eu gosto daquela que diz “deixa a vida me levar, vida leva eu” — canta, ao mesmo tempo em que levanta e começa a dançar. Basta imaginar o batuque do samba para que se mova. Não tem jeito.

(Foto: Diorgenes Pandini / Diario Catarinense)

Lidinho se diz um homem feliz porque “todo mundo me quer bem”. E nessa época do ano, fica mais feliz ainda. Além do samba de todos os sábados no Canto do Noel, no Centro Histórico, e outros bares, participa dos ensaios das escolas no entorno da Praça XV, saiu no Berbigão do Boca, e neste sábado atravessará os 400 metros da Nego Quirido na velha guarda de sua escola do coração, a Copa, que frequenta há meio século. Questionado se há algo que ficou pendente, alguma coisa que ainda queira fazer, com serenidade, garante:

— Nada. Eu já estou em fim de carreira.

A frase até entristece, mas ele a pronuncia sorrindo. Porque “enquanto tiver força nas pernas”, garante, Lidinho vai continuar sambando. Afinal, ele é o samba.

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