A demolição de uma casa do século 19, no Centro de Florianópolis, reacendeu uma discussão que se prolonga há décadas: a conservação do patrimônio que forma o circuito histórico da Capital. Segundo o Ipuf, a casa era tombada desde 1986, mas foi destruída na semana passada sem autorização da prefeitura, conforme previa a lei. O conteúdo foi apresentado em primeira mão aos assinantes digitais do DC, na segunda-feira. O Serviço do Patrimônio Histórico, Artístico e Natural do Município (Sephan) já notificou a Polícia Civil para que fosse aberta uma investigação a respeito, e o dono pode agora responder por danos ao patrimônio público e histórico.
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A casa, localizada no número 290 da Rua Henrique Valgas, foi erguida à beira do mar no século 19. O aterro da Baía Sul ainda não havia sido feito e o prédio foi uma residência durante praticamente toda a sua existência. Para o Sephan, a demolição foi uma “perda irreparável” à história da arquitetura lusobrasileira, fato agravado devido ao imóvel se localizar em uma das áreas de maior visibilidade da cidade.
O engenheiro civil, perito judicial e proprietário do imóvel, Léo Saraiva Caldas, 74 anos, explica que demoliu o edifício porque a estrutura e o interior dele já estavam comprometidos, ficando apenas uma “casca” de pé. Caldas nega que a casa fosse tombada como patrimônio histórico e afirma que usuários de crack invadiam o local com frequência, danificando as vigas de madeira que a sustentavam e botando em risco a segurança das pessoas que se abrigavam no local por conta própria.
– Não fui eu que destruí a casa, ela já estava numa situação irreparável há meses. O que eu fiz foi impedir que a construção ruísse e machucasse as pessoas que ocupavam ela – defende o engenheiro.
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A gerente do Sephan, Maria Anilta Nunes, nega que a casa estivesse condenada e diz que os últimos pareceres no imóvel – neste ano e em 2012 – apontavam para um bom estado de conservação. As avaliações foram feitas por equipes técnicas que estiveram no casarão depois que um pedido de isenção no IPTU foi feito pelo proprietário, como prevê a lei municipal sobre bens tombados. Por se tratar de uma avaliação anual, esta ferramenta serve também como um termômetro do processo de deterioração do patrimônio.
– A isenção no IPTU varia de acordo com o estado de conservação do imóvel. A casa que foi demolida, por exemplo, tinha isenção de 60% desde o ano passado, o que representava cerca de R$ 2.200 por ano. Caso o proprietário comprovasse que mesmo assim não conseguiria arcar com as reformas, a prefeitura poderia então notificá-lo. No contrário, numa situação de abandono, ele deve responder juridicamente de acordo com legislação de proteção a patrimônios tombados – explica Maria Anilta.
Ampliar a preservação
Florianópolis é uma cidade que tenta retardar o avanço da ocupação desordenada há décadas. As fortalezas de Santa Cruz, Santo Antônio, São José da Ponta Grossa e o Forte de Santana foram tombadas em 1938 e estão entre os 60 primeiros tombamentos federais no Brasil. Além disso, a Capital foi a primeira cidade do país a estabelecer uma legislação de conservação em âmbito municipal, em 1974.
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A lei é um reflexo de uma série de iniciativas privadas e públicas que fizeram parte do patrimônio da Capital desaparecer durante a década de 1970. O secretário adjunto da Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Desenvolvimento Urbano, Cesar Floriano, explica que a década seguinte representou um momento de transformação nos modos de conservar a arquitetura colonial de Florianópolis, mas que ainda há muito a ser feito.
– Considero a preservação muito bem feita em Florianópolis, apesar de casos como este. Devemos agora focar em outro ponto: não apenas a preservação da arquitetura colonial, como já fazemos desde a década de 1980, mas também das paisagens e de um modo de vida que está desaparecendo.
“O protagonismo não pode ser o turismo”
Cesar Floriano é secretário adjunto da Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Desenvolvimento Urbano (SMDU), doutor pela Universidade de Madrid e Pós-doutor pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, com experiência em planejamento de espaços urbanos. Floriano também é professor do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da UFSC, onde leciona disciplinas como História da Arte e Arquitetura Contemporânea.
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Diário Catarinense – Qual exatamente o papel desta casa no cenário histórico da cidade?
Cesar Floriano – A casa em si era excepcional, se integrava perfeitamente à paisagem, mas a questão vai além disso. O imóvel fazia parte do que se chama de “polígono de tombamento” da ponte Hercílio Luz: nada pode ser mexido dentro desse polígono sem autorização prévia, pois toda a área faz parte de um mesmo contexto cultural e arquitetônico. Toda a área dos entornos da ponte é automaticamente tombada.
DC – O proprietário afirma que a casa estava ruindo. Qual deveria ter sido a atitude dele?
Floriano – Hoje já estamos com a tecnologia avançada o bastante para restaurar qualquer coisa. Ele sabia disso e agiu de má-fé. De maneira alguma destruir a casa seria a solução correta, isso não faz sentido. As pessoas tem que saber que são responsabilizadas quando acabam com um patrimônio tombado.
DC – Você considera a preservação dos patrimônios de Florianópolis bem-sucedida?
Floriano – Considero ela muito bem feita, apesar de casos como este, pois conseguimos resguardar uma quantidade muito grande de bens culturais. Entretanto, devemos focar em outro ponto agora: não apenas a preservação da arquitetura colonial, como já fazemos desde a década de 1980 e vamos continuar fazendo, mas também das paisagens e de um modo de vida específico que só existe aqui.
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DC – Como essa preservação pode ser feita?
Floriano – Temos que ampliar a nossa percepção de o que deve ser conservado. Não é mais só o meio ambiente do Morro da Cambirela, mas também a paisagem estética dele. Não é preservar a canoa ou a casinha do pescador de uma comunidade da Ilha, mas o próprio modo de vida dele, que representa um mundo que já está desaparecendo. Enfim, a casa destruída fazia parte de uma paisagem cultural que envolve muito mais que aquele ponto específico