Este artigo foi escrito pelo diretor de marketing Deivid Antônio Clarinda, filho de Marcos Antonio Clarinda, que morreu no último sábado após disparo com uma pistola Taser excecutados pela Polícia Militar e injeções do Samu, dadas para acalmá-lo.

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Sobre virtudes e defeitos

No domingo enterrei meu pai. No dia que ele gostava de ficar com a família e torcer pelo Flamengo.

O domingo sempre foi o seu dia predileto. O jogo do Flamengo e a família reunida eram o ápice para ele. Um homem nobre, porém muito humilde. Gostava de coisas simples. Um pé de laranjeira e seus passarinhos cantando em volta já lhe rendiam sorrisos de sincera felicidade.

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Flamenguista doente, orgulhava-se em dizer para todo mundo que era pedreiro (como se fosse um médico bem sucedido), e que ele mesmo construiu sua própria casa, com o seu suor, para a família morar. E quando chovia, com todos dentro de casa, ele olhava para o teto e dizia: “Não tem nenhuma goteira, estamos protegidos”.

Nos tempos modernos, ele ainda era um homem antigo. Com 17 anos, talvez um pouco menos, saiu da cidade natal para tentar uma vida melhor na Capital com minha mãe. Junto, uma sacola de roupa e um sonho de serem felizes, acreditando no amor. Já sabendo que teria que virar super-herói, pois minha mãe estava grávida de mim.

Estou aqui desabafando e perguntando para o Brasil se uma pessoa com esses princípios merece ser tratada como um animal e morto com um choque. Aliás, nem animal merece isso. Um pai que fez os filhos fazer catequese, comunhão. Que seguia os 10 Mandamentos. E como diz nos 10 Mandamentos, foi no domingo que enterrei meu pai. No dia que ele gostava de ver o Flamengo. No dia que ele gostava de ficar com a família. No dia que ele queria descansar. E também foi no domingo, às 10h, que vi ele pela última vez, pela janelinha do caixão. Mas, aquela pessoa gelada, machucada, não era o meu pai que assava o churrasco no domingo e dizia que o Flamengo ia ganhar.

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Enfim, arrumei forças na fraqueza da minha mãe. Ela dormiu três décadas ininterruptas ao lado do meu pai e, no sábado, não foi diferente. Ficou olhando para ele a noite toda esperando ele acordar. Mas ele não acordou.

Marcos Antonio Clarinda era o tipo do homem linha dura, que chamava os filhos em apenas um assovio. Um dia, fiquei em recuperação na escola. Lembro como se fosse hoje. Eu estava na sétima série e precisava fazer recuperação. Mas isso para ele era inadmissível! Quando ficou sabendo, pegou meu boletim, rasgou e disse: “Você não vai fazer essa prova. Pra mim, você já reprovou de ano. Vou te levar para a obra e vou te mostrar o que acontece com uma pessoa que não termina pelo menos o Ensino Médio”. No ano seguinte, ele me tirou do ano letivo e me levou 10 meses para a obra. Lá, eu não fazia nada, apenas ficava sentado olhando ele trabalhar e, às vezes, ele me pedia para abrir e fechar a torneira para ele. Não teve remédio melhor: no terceiro bimestre do outro ano, após o castigo, eu já tinha passado de ano direto.

Aqui foi um desabafo de um filho inconformado com o despreparo da nossa segurança. Mataram uma pessoa do bem que nunca teve passagem pela polícia. Abrace seus pais todos os dias pela manhã. Antes que seja tarde demais.

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