Mais de 60 mil processos relacionados à violência doméstica tramitaram no Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJ-SC) desde 2012 até o primeiro semestre deste ano. São quase 30 novas ações a cada dia. Os dados mostram a alta demanda por este tipo de atendimento jurídico focado na mulher. Atentas a isso, advogadas vêm se voltando a esta área de atuação, que é respaldada por disciplinas optativas, grupos de estudo e produção científica nas universidades do Estado.
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A professora de Joinville S. D. (o nome da vítima foi preservado para protegê-la), 35 anos, foi uma das que entrou na Justiça na tentativa de interromper o ciclo de violência sofrido. Desconfiada do julgamento que poderia receber ainda na delegacia, solicitou a presença de um advogado na primeira vez que denunciou o ex-companheiro por ameaça e agressão há pouco mais de sete meses.
À época, a mulher havia conquistado, inclusive, uma medida protetiva, que impedia a aproximação do agressor. Temendo que o filho deixasse de ver o pai, voltou atrás e invalidou a determinação judicial. Ela de arrependeu, já que as violências psicológica e física continuaram. Foi quando entrou em contato com uma amiga de infância, Júlia Melim Borges Eleutério, para que todo o processo fosse refeito. A advogada havia acabado de reformular a própria atuação profissional para assumir este tipo de demanda em específico.
A partir de uma equipe formada exclusivamente por mulheres, Júlia trabalha desde junho em Joinville, no Norte do Estado, com uma nova proposta de advocacia: a de gênero, que contempla tanto as mulheres, quanto a população de lésbicas, gays, travestis, transexuais, transgênero e intersexos (LGBTI). O escritório pioneiro nesta atuação no país foi aberto há pouco mais de um ano, em São Paulo.
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A ideia é prestar todo o tipo de orientação às mulheres e até mesmo encaminhamento para atenção psicológica. Transformar o pensamento vigente do magistrado, que segundo Júlia ainda é conservador, por meio da teoria feminista é a proposta na outra ponta do atendimento.
– Esse tipo de advocacia surge para proporcionar um atendimento humanizado de mulher para mulher – argumenta.
A advogada explica que também atende homens.
– Muitas pessoas têm me perguntado se vou atender homens. Vou atendê-los, exceto os agressores, porque acredito que a desconstrução da cultura do machismo, que eleva os índices de violência contra a mulher, também deve passar por eles – complementa Júlia.
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Outra advogada que atua nessa área em Santa Catarina é Ana Paula Nunes Chaves, também de Joinville. Apesar de ainda não ter se apresentado como pertencente a um escritório feminista, ela presta assistência jurídica às mulheres, especialmente as negras, e LGBTs desde outubro de 2016. Assim como Júlia, busca conhecimento na própria militância.
– Nós presenciamos uma dificuldade de ter este olhar no judiciário em relação à vítima. As demandas das mulheres são totalmente diferentes, então tem que haver um olhar mais sensível para se ter justiça. Para isso, nos fortalecemos em grupos e eventos, como o primeiro encontro da advocacia negra no Brasil, dentro da 23a Conferência Nacional da Advocacia Brasileira, que neste ano vai tratar da advocacia feminista – exemplifica.
Especialidade é inserida aos poucos nas universidades de SC
Os currículos das graduações e pós-graduações em direito no Estado ainda não têm disciplinas obrigatórias ou linhas de pesquisa tão focadas para essa atuação. Na contramão desse contexto, se destacam ações isoladas, como na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), que oferece uma disciplina optativa e um grupo de pesquisa focados nas questões de gênero, conforme conta a coordenadora do grupo de estudos, professora Grazielly Baggenstoss.
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— O curso de direito da UFSC iniciou em 2016 a discussão a partir do grupo de pesquisa e extensão Direito das Mulheres. Ainda naquele ano, foi proposta a criação da disciplina optativa Direito e Feminismos, inserida no currículo e ministrada neste ano com lotação de turma. É um contraponto à ideia de que há um discurso universal de direitos que contempla, de forma igualitária, todas as pessoas — opina.
Geralmente abordado dentro dos direitos humanos, Grazielly ainda defende a criação da tipologia do direito das mulheres no espaço da pós-graduação para que sejam aprofundados os estudos da temática e da representação no campo jurídico. Atualmente, não há uma especialização tão focada, o que é lamentado por quem atua nessa esfera. Mesmo entendimento tem a professora de direito da Universidade do Vale do Itajaí (Univali) Adriana Spengler, que explica as especificidades dessa atuação, principalmente no aspecto criminal.
— Esse é um setor que demanda proteção jurídica além do usual. A Lei Maria da Penha serve para esse plus de proteção, como o Estatuto da Criança e do Adolescente e o Estatuto do Idoso. Mas, ao mesmo tempo, a legislação é super ampla em relação aos crimes. Um procedimento criminal é diferente do outro. A advogada que defende a mulher pode figurar como assistente de acusação do Ministério Público, por exemplo, e isso demanda conhecimento, além de sensibilidade e empatia — defende.
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Na Univali, é crescente a apresentação de trabalhos de conclusão de curso e de iniciação científica sobre as questões de gênero nos últimos três anos, quando houve 61 defesas relacionadas à temática. De 2014 para 2015, por exemplo, esse número quase dobrou: de 12 para 23 artigos. Mesma realidade se repete na Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul).
— Saem muitos TCCs sobre a Lei Maria da Penha. Achamos que seria só após o surgimento da legislação, mas esse debate não só não se acalmou, como é bastante recorrente — detalha a professora responsável pelo curso no bairro Cidade Pedra Branca, em Palhoça, Virgínia Lopes Rosa.
Apesar de ter produção científica menos significativa nessa linha, a Universidade Regional de Blumenau (Furb), que teve 26 produções focadas em gênero desde 2012, aborda a temática de forma diluída no currículo. Os direitos da mulher e da população LGBTI estão incluídos nas matérias relacionadas aos direitos humanos, segundo a coordenadora da graduação, Tatiani Heckert Braatz.
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A advogada que preside a comissão estadual de Gênero e Direito Homoafetivo na Ordem dos Advogados do Brasil em Santa Catarina, Margareth Menezes, por sua vez, volta o olhar para a necessidade de especialização em outra área. Para ela, a pessoa que pretende atuar com os direitos da mulher e LGBTI deve entender sobre a diversidade como um todo.
— Um escritório de advocacia feminista com departamento LGBTI é bastante positivo. Mas os profissionais devem ter conhecimento prévio. Vejo muitos advogados que sequer sabem o que é gênero, identidade de gênero, sexualidade ou pessoas trans — relata.
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