Aproveitei o feriadão para fazer uma faxina no meu armário e achei um envelope cheio de fotos da época em que era recepcionista de hotel, no início dos anos 2000: aquele olhar sonhador e sofrido, do tempo que nunca sobrava dinheiro para comprar livros e me entocava nas bibliotecas públicas nas horas vagas ou rabiscava contos na madrugada. Só não desisti de escrever porque conclamava a imagem de Roberto Bolaño, autor dos clássicos Os Detetives Selvagens, 2666 e Estrela Distante, que escreveu grande parte de sua obra enquanto trabalhava como lavador de pratos, monitor e segurança noturno de campings e gari. Ou então do norte-americano Jack London, que chegou a trabalhar até 18 horas por dia na fábrica de enlatados Hickmott’s, ou ainda do inglês George Orwell, que no livro Na Pior em Paris e Londres relata suas experiências como garçom nos piores restaurantes possíveis. Lembro dessas passagens com certo divertimento, como se fosse um capítulo deste grande livro que é a vida, que não sei se é realmente cheia de som e fúria, e contada por um idiota, como já disse Shakespeare em Macbeth, mas é a nossa vida.
Continua depois da publicidade
Leia a coluna de estreia de Carlos Henrique Schroeder
E falando de literatura e empregos inusitados, na próxima sexta-feira, o escritor carioca Henrique Rodrigues lança o romance O Próximo da Fila às 19h na livraria Saraiva do Beiramar Shopping, em Florianópolis. A obra tem contornos autobiográficos e acompanha a história de um adolescente da classe C, morador da periferia, que recorre ao emprego numa rede de fast food para aliviar o arrocho financeiro da família. É um original e divertido romance de formação que retrata com leveza e poesia os sonhos, as frustrações e os medos de uma das épocas mais conturbadas que vivemos: a entrada na vida adulta.
Continua depois da publicidade
Leia outras notícias de literatura
Operário das letras
Seja recebendo hóspedes, fritando hambúrgueres ou lecionando na universidade (se engana quem acha que na academia a vida é moleza), as veredas da literatura nunca são fáceis. Um dos grandes lançamentos deste ano foi Stoner, de John Williams, publicado há 50 anos nos EUA e só agora traduzido no Brasil. É a história de um professor universitário, o Stoner do título, que por brigar com o coordenador de seu curso é perseguido e prejudicado em sua vida pessoal e acadêmica até o final de seus dias. É um livro sobre redenção, e Stoner rega a aridez de sua vida e da trajetória universitária com dedicação exemplar pela docência e pela literatura. O livro tem uma legião de fãs, composta por escritores tão díspares quanto Enrique Vila-Matas, Julian Barnes, Ian McEwan e Nick Hornby.
Diário de um leitor
Espelhos Gêmeos – Pequeno Tratado das Perversões, de Péricles Prade: com mais de 70 livros publicados, em diversos gêneros, o escritor catarinense apresenta 25 contos eróticos de teor fantástico – um encontro de Borges e Kafka com Sade. Numa das narrativas mais contundentes, temos até a história do sapato que relata suas aventuras sexuais com humanos.
O Livro das Semelhanças, de Ana Martins Marques: a jovem poeta mineira procura, numa linguagem precisa e concisa, recuperar o mundo e as certezas por meio da palavra. Assim como em Drummond, a aparente simplicidade de seus poemas esconde um olhar filosófico sobre este nosso mundo fraturado.
O Vento que Arrasa, de Selva Almada: simplesmente um dos melhores livros que li neste ano. A autora argentina faz, à maneira de outro grande autor argentino, Juan José Saer, uma leitura fantástica do real. O livro retrata a história de um pastor evangélico e de sua filha Leni, que são obrigados a fazer uma parada na oficina mecânica do Gringo, local onde conhecem o jovem ajudante Tapioca e querem convertê-lo e levá-lo consigo. Umas das melhores cenas de violência física e psicológica da literatura contemporânea estão nesse breve e fascinante romance.
Continua depois da publicidade