Já vi enchentes e alagamentos em todas as cidades em que vivi: Agrolândia, Braço do Trombudo, Balneário Camboriú, Jaraguá do Sul, Rio do Sul e Trombudo Central. Parece uma condição intrínseca ao catarinense ter que passar por todo o tipo de provações de ordem natural. É a nossa rotina, respeito e temor pela natureza: enchentes, ciclones e tornados já se tornaram palavras comuns. Talvez por isso tenha gostado tanto de Outras Vidas que não a Minha, do escritor francês Emmanuel Carrère, que começa com o testemunho de uma tragédia de proporções globais, o tsunami de 2004 (mesmo ano que tivemos o furacão Catarina aqui em SC) no Oceano Índico. Carrère descreve um pouco do horror que se seguiu e conta a história de duas famílias que foram afetadas e a luta para ter acesso aos corpos das vítimas. E conecta com outra história tocante, da morte da irmã de Hélène, sua esposa, levada pelo câncer. Carrère prova que tragédias, grandes ou pequenas, são sempre íntimas, o que me leva para a clássica frase de Céline: “Em circunstâncias da verdadeira tragédia se veem as coisas imediatamente… Passado, presente e futuro juntos.”

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O som e a fúria

E toda vez que vejo o rio oscilando (eu moro a cem metros do principal rio da minha cidade) lembro de Palmeiras Selvagens, do William Faulkner: o livro é composto de duas narrativas completamente díspares, que se alternam em capítulos. Numa delas, o velho (apelido do rio Mississipi nos EUA) mostra sua fúria com uma grande enchente que obriga os prisioneiros de uma fazenda penal da região a serem deslocados num caminhão. Um deles, chamado apenas de “condenado alto”, cai na água durante um traslado com um bote e desaparece. Mas sobrevive e com um bote tenta desesperadamente chegar a algum lugar e se entregar à polícia, para voltar à cadeia. Na louca deriva da enchente do rio o condenado acaba recolhendo uma mulher grávida prestes a dar à luz, e todas as tentativas que faz de entregá-la sã e salva em algum lugar sólido fracassam, pois com a roupa de presidiário é sempre expulso a tiros e se vê obrigado a voltar com a mulher para os caprichos da enchente. Até que chega a uma ilhota, e acaba por realizar o parto. Quando finalmente volta à cadeia, já dado como morto, recebe o acréscimo de 10 anos à pena por “tentativa de fuga”, o que ele aceita feliz, relatando sua aventura aos colegas do presídio enquanto ostenta o charuto que ganhou do diretor da prisão. Muitas vezes me pego olhando o rio e esperando a chegada do “condenado alto” para lhe dar a mão.

ACL completa 95 anos

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Das chuvas

Comprei este original do quadrinista catarinense Pedro Franz quando entendi que sou o abominável homem-das-chuvas. Ele integra Potlatch, o capítulo final de sua trilogia Promessas de Amor a Desconhecidos enquanto Espero o Fim do Mundo. O melhor e mais ambicioso projeto de quadrinhos do Estado.

Diário de um leitor

A condição primária do escritor é a solidão: entre um livro lido e o teclado do computador há um abismo e lá na equidistante memória os fragmentos de leituras misturam-se esperando alguma chance de submergir. Aproveitarei então este espaço para semanalmente indicar um livro de um autor catarinense (é preciso olhar para nosso quintal), outro brasileiro e por fim, de um estrangeiro, preferencialmente lançados em 2015.

1. Os Abraços Perdidos, de João Chiodini: o excepcional romance deste jovem catarinense é o retrato de uma traumática (e autobiográfica, o que deixa o livro mais dilacerante ainda) relação pai e filho. Numa prosa fluida e seca, constrói um painel da inaptidão que certas pessoas têm para estabelecer relações de afeto.

2. Jeito de Matar Lagartas, de Antonio Carlos Viana: um dos maiores contistas brasileiros vivos, Viana volta com suas narrativas breves e assertivas em torno da infância e da velhice, mas sobretudo sobre nosso inegável e nem sempre amigável parceiro, o corpo.

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3. Estação Atocha, de Ben Lerner: o aclamado romance do norte-americano é um olhar delirante sobre a poesia, a tradução e a condição do poeta. Através da perspectiva de Adam Gordon, um poeta folgado, mentiroso e dissimulado, que recebe uma bolsa de uma fundação para escrever um livro em Madri, vemos o quanto a arte está encurralada na contemporaneidade.

* Carlos Henrique Schroeder estreia hoje como colunista de literatura do Diário Catarinense. Seus textos serão publicados todas as quartas-feiras. Nascido em Trombudo Central, no Alto Vale do Itajaí, e morador de Jaraguá do Sul, no Norte, é autor da coletânea de contosAs Certezas e as Palavras (Editora da Casa, 2010) – vencedora do Prêmio Clarice Lispector, da Fundação Biblioteca Nacional – e dos romances As Fantasias Eletivas (Record, 2014) e História da Chuva(Record, 2015), entre outros. Tem contos traduzidos para o alemão, o espanhol e o islandês. É idealizador e coordenador geral da Feira do Livro de Rio do Sul e do Festival Nacional do Conto e curador daFeira do Livro de Balneário Camboriú