
Deborah Colker é, atualmente, a mais famosa e respeitada coreógrafa do Brasil. Não só porque o País não costuma reconhecer os profissionais da dança, mas porque a carioca de 57 anos, além de premiada, ultrapassou as barreiras colocadas entre o que é considerado assunto de intelectuais e o que é popular. Ela foi a responsável pelo espetáculo de abertura das Olimpíadas no Brasil, no ano passado; coreografou o espetáculo de dança da abertura da Copa do Mundo na Alemanha, em 2006; e já foi convidada para criar e dirigir um espetáculo do Cirque du Soleil, em 2009.
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Tudo isso, e o fato de ter sido a única brasileira a receber um Laurence Olivier Award pela excelência de seu conjunto de obra em 2001, fazem com que seu nome seja uma referência que não passa despercebida nem mesmo pelo público leigo em artes cênicas. Não a pouparam, no entanto, de, nesta quarta-feira, 19 de julho, passar o dia em um aeroporto americano esperando um voo e lamentando não estar em Joinville para a apresentação de Cão sem Plumas, o mais novo trabalho da companhia de dança que leva seu nome e será o espetáculo da Noite de Abertura do 35ª Festival de Dança de Joinville.
— Estou em pé, esperando um avião que sairá apenas às 22 horas e sendo tratada como um cão. Um cão sem plumas — brinca ela, sobre o tratamento frio a que os passageiros estão sendo submetidos nos aeroportos.
É também sobre essa perda da humanidade que Cão sem Plumas trata ao utilizar como base o poema de João Cabral de Melo Neto, em um texto que retrata a vida dos moradores do Estado do Pernambuco a partir do fluxo do rio Capibaribe. Ao transportá-lo para o palco, em um espetáculo de dança que utiliza também o audiovisual e a própria literatura como formas de narrativa, Deborah Colker renova a denúncia feita pelo poeta em um livro lançado há 67 anos.
— O poema de João Cabral é muito atual. É como se ele tivesse escrito sobre o que está acontecendo hoje no mundo, com a falta de água. Ter ido buscar um texto escrito há tanto tempo talvez seja muito mais forte do que se houvéssemos escolhido uma obra atual — afirma a coreógrafa.
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Cão sem Plumas será apresentado a partir das 20 horas no Centreventos Cau Hansen. Os ingressos já estão esgotados, mas, cerca de 10 minutos antes do espetáculo começar, é possível verificar na bilheteria se houve desistências. Entre 27 e 30 julho, a peça estará no Theatro Municipal do Rio de Janeiro.
Por telefone, Deborah conversou com a reportagem do jornal “A Notícia”. Confira abaixo os principais momentos da entrevista:
A pesquisa
Geralmente levamos de dois a dois anos e meio para produzir um trabalho, entre tempo de pesquisa e estreia. Mas Cão sem Plumas levou três anos e meio — estávamos estreando Belle no Festival de Teatro de Curitiba em maio de 2014 quando comecei a estudar o poema. Estudei muito cada parte dele e chamei o (cineasta) Cláudio Assis para começarmos a conversa, em um processo de busca por este “homem-caranguejo” de que João Cabral fala no poema. Estudei cada palavra do livro para ir encontrando no corpo e no movimento como retratar o “homem-caranguejo”; o rio Capibaribe, que começa pequeno e vai crescendo, forma mangue, passa pelas favelas e chega grandioso no Recife antes de encontrar o mar.
O laboratório
Fui muitas vezes a Pernambuco neste período mas, no final, decidimos fazer uma residência de três semanas passando pelas cidades banhadas pelo rio e oferecendo oficinas de dança. Eram oficinas de manhã e à tarde, com três bailarinos se encarregando de cada grupo. A cada cidade, no fim, organizávamos saraus com os alunos e com os artistas locais. Conhecemos atores, grupos de maracatu, artistas que faziam poesia no improviso. Tudo isso foi muito rico em experiências vividas pelos bailarinos, para conhecermos a cultura popular daquela região por meio dos seus artistas. Passamos dias chafurdando na lama, da mesma forma que os moradores, os barqueiros que nos levaram aos manguezais, e foi tudo filmado. Está presente no espetáculo, como um grande efeito 3D, que por vezes parece invadir o palco e em outras, que o bailarino vai para dentro da tela.
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Arte como experiência política
O Cão sem Plumas do João Cabral não é panfletário, é um manifesto. Ele foi escrito depois que o João Cabral, vivendo em Barcelona, foi à embaixada brasileira e leu que a expectativa de vida de um homem na Índia era, em média, de 29 anos; e em Pernambuco era de 28 anos. Naquela época (fim dos anos 1940), a Índia era uma miséria total e João Cabral ficou muito chocado. Foi o que o motivou a escrever. A dança é uma manifestação artística com uma potência de diálogo muito forte, de comunicação e expressão com o público. No espetáculo, usamos três linguagens muito fortes: a dança, o audiovisual e a poesia, já que a palavra está presente nas canções e nas declamações do Lirinha (o compositor pernambucano foi responsável pela trilha sonora com Jorge Du Peixe e Berna Ceppas).
No poema, João Cabral faz associações o tempo inteiro, cada palavra usada é desenvolvida no verso seguinte. Ele é muito geográfico, te obriga a ver aquele rio e te obriga a ver aquele homem que vive à beira do rio, o homem saqueado, esquecido. O limite na capacidade de expressar é do diretor e minha direção foi muito atenta a que versos seriam importantes para ter a densidade do que é dito no poema.

O espetáculo
Cão sem Plumas me levou a lugares inéditos. Eu nunca fiz um espetáculo sem coxias. O palco está aberto, não tem nem cortinas. O público chega e dá de cara com o cenário. Então eu digo que cada escolha estética é também política, de envolver o público através da música e do movimento. No início, quando os primeiros jornalistas assistiram ao espetáculo, me diziam que era uma peça política e eu negava, mas agora eu afirmo com certeza. É política, mas não faz do palco uma bancada, entende?
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O Festival de Joinville
Eu estou com tanta pena de não conseguir chegar a tempo para a apresentação porque considero tanto o Festival de Dança de Joinville. É um lugar onde jovens realmente interessados em dança assistem ao espetáculo, jovens que podem vir a se tornarem bailarinos, coreógrafos, professores, ensaiadores… Considero muito importante [Cão sem Plumas ser apresentado na Noite de Abertura] para propor discussão de qual é a função da dança, das possibilidades da dança, do trabalho técnico do bailarino. Porque ele precisa, para ser um artista, saber sobre a cultura popular, sobre o mundo e não só sobre o mundo da dança. Ele precisa ser um corpo que pensa, que faz escolhas para poder expressar sentimentos. A dança trabalha com a forma mas nela sempre está contido conteúdo.
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