De todas as quase 300 pessoas que passaram por algum tipo de atendimento médico por causa da reação química em São Francisco do Sul, o bombeiro Davi Marcelino, de 60 anos, é quem leva a maior carga de emoção, transformações de vida e, é claro, de resíduos tóxicos. Marcelino ficou 15 dias desacordado na Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) do Hospital Regional de Joinville; quase dois meses internado no mesmo hospital; e, depois, 41 dias sem poder levantar da cama em casa.
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Um ano depois, ele tosse a cada pausa de fala. Sua voz é rouca e fanha, mas o principal problema que ficou daquele dia é que 15% das vias respiratórias e pulmões ainda estão afetados pelo produto químico.
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– Para mim, não fez um ano ainda. Fiquei quatro meses inativo, sem condições de trabalhar, fora dos bombeiros. Fui internado em 25 de setembro e saí do hospital em novembro. Depois, mais 41 dias em casa. Tive de ter um período de adaptação até para dirigir. Esse tempo todo sem ministrar treinamentos. Se eu falo muito, começo a tossir, dá ânsia de vômito – diz o bombeiro.
Davi Marcelino vai a Porto Alegre a cada dois meses para se consultar com a mesma equipe médica que tratou as vítimas do incêndio na boate Kiss, em Santa Maria (RS).
– O problema é a tosse insistente, a ponto de provocar vômito. A voz ficou muito fanha e rouca. Eu não cantava. Agora, então, para alegria de algumas pessoas, não posso mais nem gritar – brinca o bombeiro, que é conhecido por ser bem-humorado e ter sempre uma piada nova nos treinamentos que ministra para os novatos.
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Quando lembra do acidente, Marcelino muda a fisionomia. Ele diz que quando a sua corporação foi acionada durante a madrugada, os bombeiros de Joinville já estavam cansados, após uma noite inteira combatendo o incêndio. Naquele momento, o comandante da operação passou para Marcelino o comando de um caminhão que tem um canhão por controle remoto. Cerca de 30 minutos depois, houve um fluxo de gás muito forte. Uma das paredes do galpão rachou e o vento virou contra os bombeiros.
– Nós batemos em retirada e dei por falta de um dos bombeiros. Tirei a minha máscara que estava saturada, me abaixei e rastejei até localizá-lo. Nos ajudamos a sair, se arrastando, em direção á área amarela (segura) – destaca.
Ele recorda ainda ter caído por cima do companheiro durante a escapada, além de alguns flashes, a ambulância balançando e as paredes brancas.
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– Deduzi que estava em um hospital. Lembro que alguém tocou no meu rosto, um enfermeiro, e perguntei onde estava o pessoal. Ele me respondeu estavam em casa. Aí eu perguntei sobre o rapaz que resgatei durante o incêndio. E a resposta foi esclarecedora: “Seu Davi, o senhor não está se dando conta. Hoje é o décimo quinto dia que o senhor está aqui.”
Exemplo de dedicação
O apagão na memória do bombeiro Davi Marcelino é aliviado por imagens da mulher que o acompanhou durante todo o tratamento. O medo e a proximidade da morte ficaram pequenos diante do amor. Casado há 14 anos e meio, Marcelino tem dois filhos _ um de 15 e outro de nove anos _ com a mulher e fica emocionado quando fala dela.
– Ela me deu uma prova de dedicação. Foi parceira, companheira, é o amor da minha vida. Saiu de Navegantes, tirou as crianças da escola, as matriculou em Joinville e ficou na casa do meu filho do primeiro casamento, a quem devo muito também. Ela me visitava todos os dias. Para chegar no hospital, pegava três ônibus. Minha mulher ficou na UTI e, depois no quarto, o tempo todo. Se isso não for uma prova de dedicação, não sei mais o que é.
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Um ano depois do acidente, a família de Marcelino voltou a morar em Navegantes. O bombeiro não atende mais às ocorrências, mas vai a Guaramirim alguns dias da semana para encontrar os amigos, colocar a conversa em dia e animar os companheiros.
O trabalho

Marcelino sonha em voltar a atuar normalmente como bombeiro voluntário em novembro deste ano. Por enquanto, é um sonho, um desejo muito forte, motivado pelas conquistas recentes no tratamento.
_ Precisei tirar uma licença para me recuperar fisicamente. Trabalhei alguns meses no Samu este ano, mas não estava conseguindo voltar ao meu ritmo. Eles não se incomodaram, mas eu notei que estava mais lento nas atividades. Pedi para parar um pouquinho. Mas em novembro eu quero estar de volta _ avisa.
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Além de ministrar cursos no Senai e nas empresas de toda a região, Marcelino também atua como especialista em produtos químicos e atuações de alto risco nos Bombeiros Voluntários de Guaramirim. Ele foi procurado por advogados para ingressar com ações na Justiça e recuperar, pelo menos financeiramente, o tempo e um pouco da saúde perdidas. Mas Marcelino recusou-se.
_ Eu lido com pessoas há 36 anos. Trabalho com risco. É o meu trabalho. Conversei muito com os administradores da empresa. Não participei de ação na Justiça nenhuma. Voltei para salvar meu colega por um gesto automático, instintivo. Não foi heroísmo nem imprudência. Foi um instinto e ninguém tem culpa. Já me perguntaram se faria de novo. Eu disse que não. Porque eu também errei. Se a gente soubesse que produto era, teria levado equipamentos autônomos e não uma simples máscara descartável _ pondera.
O bombeiro afirma que nunca mais voltou e nem pretende voltar ao local do acidente.
_ Não tem nem porquê. O barracão foi reformado. Não tem motivo. O local não iria me relembrar nada _ observa.
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Confira o cronograma da série de reportagens:
20 e 21/9 – Sábado e domingo
Apresentação e imagens dos mesmos locais no dia do incêndio e hoje
22/9 – Segunda-feira
23/9 – Terça-feira
Os personagens que testemunharam o incêndio de perto
24/9 – Quarta-feira
As lições e consequências do caso