Um extintor de incêndio ou um pedaço de concreto que servia de mesa. Com esses materiais, adolescentes que cumprem medidas de internação socioeducativa no Centro de Atendimento Socioeducativo (Case) da Grande Florianópolis, em São José, empreenderam três fugas da unidade em menos de dois meses. Eles utilizaram os objetos para, em grupo, avançar contra um muro de cinco metros e quebrá-lo em sua base. Pelo buraco, ganharam as ruas. A facilidade com que ocorreram as fugas, em uma estrutura inaugurada em 2014 ao custo de cerca de R$ 13 milhões, espanta agentes socioeducativos, o Ministério Público de Santa Catarina (MP/SC) e a Justiça.
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Outros problemas, relatados por servidores ou expostos em ações judiciais, mostram que a situação do Case, construído para substituir o antigo São Lucas — demolido em 2010 depois de constantes fugas e rebeliões —, não atende algumas diretrizes do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), criado sob forma de lei para regulamentar a execução das medidas destinadas a adolescentes que praticam atos infracionais.
Valorizar os profissionais socioeducativos e promover a formação continuada é uma delas, aponta o promotor Gilberto Polli, da 4ª Promotoria de Justiça de São José.
— Diretriz que não está sendo cumprida pelo Estado, que até agora sequer enviou à Assembleia Legislativa o projeto de lei que cria o cargo de técnicos socioeducativos, como pedagogos, assistentes sociais, psicólogos, entre outros. Sem esses profissionais, privilegiando apenas agentes, o trabalho socioeducativo fica comprometido, como está atualmente no Case — afirmou Polli.
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Déficit de agentes
Hoje, 17 adolescentes estão internados no Case, cuja capacidade permite atender até 90 jovens, mas o déficit de agentes e técnicos fez com que a juíza Ana Cristina Borba Alves, da Vara da Infância e Juventude de São José, delimitasse apenas vagas em 20.
Segundo o diretor do Departamento de Administração Socioeducativa (Dease), Sady Beck Júnior, o déficit no sistema é de 100 a 120 agentes, além dos técnicos. De acordo com o promotor Polli, há 84 agentes socioeducativos no Case, dos quais 24 trabalham em setores administrativos e de deslocamento, e 60 atuam diretamente com os adolescentes.
— O ideal seria 180 agentes socioeducativos para funcionar com 90 menores — observa.
Servidores que trabalham na unidade e preferem não se identificar afirmam, contudo, que há 36 agentes trabalhando no local, o que tem feito muitos deles dobrarem plantões.
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— Temos problemas graves de efetivo, e com efetivo aquém do necessário é difícil fazer um trabalho socioeducativo eficiente — disse um trabalhador do Case.
13 foragidos
Para dar uma dimensão da gravidade da atual situação do Case São José, o promotor Polli lembra que somente este ano 13 internos fugiram da unidade. Apenas cinco deles foram recapturados até o momento.
— Se você pensar que o máximo de internos na unidade são 20 adolescentes, e que 13 deles já fugiram em três oportunidades, você percebe o quão grave é o problema, pois o muro, que deveria ser reforçado com concreto, como normatiza o Sinase, é extremamente frágil. Qualquer objeto mais duro quebra o muro na base e abre um buraco para as fugas — explica.
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Existe a suspeita, por parte do promotor e de agentes, de que o muro sistematicamente quebrado não atenda ao padrão arquitetônico do Sinase. O Dease nega.
Ciente da repetição de um modus operandi nas fugas, Sady Beck Júnior garante que o Dease já encontrou uma solução para evitá-las. Ele conta que será construída “uma cortina” de concreto de dois metros de altura em frente ao muro “onde ocorrem as fugas”. Sady não soube dizer o custo da obra, mas acredita que ela resolverá o problema. Sobre a causa das fugas, ele nega existir relação entre elas e o baixo efetivo do Case.
— As últimas três fugas foram falhas de procedimento — definiu.
Concurso lançado mais de dois anos depois de determinação da Justiça
Na terça-feira, mais de dois anos após uma ação judicial determinar ao Estado o lançamento de um edital para contratação de agentes e técnicos socioeducativos efetivos, a Secretaria de Justiça e Cidadania (SJC) enfim publicou o edital do concurso no Diário Oficial de Santa Catarina, prevendo 125 vagas de agentes de segurança socioeducativos homens para Florianópolis, São José, Criciúma e Joinville. Outras 20 vagas são destinadas para mulheres nas mesmas cidades. O restante, somente para agentes homens, se dividem em 60 vagas para Chapecó e 50 para Lages. As inscrições para o concurso abrem hoje, e a expectativa do Dease é de que os futuros agentes comecem a trabalhar nos primeiros meses de 2017.
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O tão esperado concurso público não prevê, contudo, vagas para técnicos, como pedagogos, hoje a maior carência do Case São José. Uma técnica que trabalha na unidade, e prefere não se identificar, afirma que desde maio, quando terminou o contrato do Governo do Estado com 70 agentes agentes Admitidos em Caráter Temporário (ACTs) desde a abertura oficial do Case, em outubro de 2014 — quando recebeu os primeiros adolescentes —, nenhum pedagogo atua no local.
— Queriam que nós fizéssemos funções de pedagoga, mas nos recusamos até como forma de pressionar para que seja lançado edital para criação dessa vagas — afirma a servidora, que entende haver um “desvio” na finalidade socioeducativa do Case.
— Apesar de toda política pública que vem do Governo Federal, em Santa Catarina, cada vez mais o sistema socioeducativo se assemelha ao sistema penitenciário, já que temos muitos agentes penitenciários em funções socioeducativas — afirma.
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A juíza Ana Cristina Borba Alves, que tem sobre sua mesa muitas das ações judiciais que envolvem o Case, apesar de não falar sobre os processos, ao ouvir o relato da reportagem da Hora sobre o edital do concurso público exclusivo para agentes, externou preocupação ao advertir que “quem atende as medidas socioeducativas previstas no Sinase são os técnicos”.
Preocupação semelhante tem o diretor de comunicação do Sindicato dos Trabalhadores no Serviço Público Estadual (Sintespe), Wolnei Chucre, para quem o mais grave, além da demora em abrir concurso público para técnicos, é a “deterioração” do trabalho dos que atualmente atuam na unidade.
— Faltam agentes, faltam assistentes sociais, psicólogos, falta tudo. Com essas lacunas, ao invés de ser um centro de reabilitação, o Case é uma cadeia para adolescentes — avalia.
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Contraponto
O diretor do Dease, Sady Becker Júnior, contesta a afirmação da servidora do Case que afirma não haver pedagogo na unidade, e desmente a afirmação de que a gestão preza por uma lógica “penitenciária”.
— Desde a inauguração do Case, as atividades socioeducativas sempre fizeram parte do trabalho.
Segundo ele, um agente com formação em Pedagogia tem feito a função de pedagogo desde maio. Em relação à suposta carência de outros profissionais da área técnica, Sady nega que faltem psicólogos e assistentes sociais na unidade.
— Temos seis assistentes sociais, se não me engano, e os psicólogos são dois ou três — diz.
DADOS SOBRE O CASE
– Interditado em 17 de dezembro de 2010 e demolido em junho de 2011, o antigo São Lucas, que antecedeu o Case São José, foi desativado após decisão da juíza Ana Cristina Borba Alves. Na época, uma ação do Ministério Público e uma série de inspeções de órgãos estaduais e federais concluíram que a estrutura não tinha mais condições e os internos sofriam com maus tratos e torturas praticados por monitores da unidade.
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– Com investimento de R$ 12 milhões, o novo Case começou a ser erguido em março de 2013. São 8,4 mil m² cercados por muros de 5 metros de altura. Salas de aulas e profissionalizantes, teatro, ginásio, centro ecumênico, alojamentos, ambulatório, lavanderia, quadra de esportes, quiosques para visitas e horta compõe a estrutura.
– São 90 vagas, sendo 70 para sentenciados (que ficam no máximo três anos), 20 para provisórios (que ficam por até 45 dias). Os jovens são separados por módulos, de acordo com o comportamento.
– A instituição está localizada nas margens da BR-101, no mesmo local que abrigava o São Lucas.
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– As fugas de 2016: A primeira foi em 17 de maio, quando fugiram três adolescentes, e apenas um foi recapturado. A segunda ocorreu em 4 de junho, e cinco adolescentes fugiram, sendo que três foram recapturados. A última fuga ocorreu em 1° de julho, com a fuga de cinco internos, e a recaptura de um deles.