Acompanho pelo Facebook dezenas de amigos que participam das manifestações contra as passagens em São Paulo. As postagens são emocionantes, corajosas, orgulhosas. São meus amigos na rua pela primeira vez, lutando por uma São Paulo melhor. São Paulo em que praticamente nenhum deles nasceu, mas que todos amam (e odeiam). As pessoas postam seus endereços próximos a locais de confronto e afirmam: se tiverem problemas venham para cá, todos são bem vindos.

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Nunca na minha geração vivi essa experiência. Nunca antes meus amigos estiveram sujeitos a tiros de balas de borracha, nunca antes relataram que a multidão grita “sem violência” e recebe em troca bombas de gás lacrimogênio. Nunca antes os mesmos amigos abriram suas casas a manifestantes em fuga. Citam até o Hino Nacional para dizer que não fugirão à luta. E eu aqui, tão longe.

Um dos contos de Julio Cortázar publicados no livro Bestiário chamado “Casa Tomada” relata uma história que se aplica a São Paulo. Dois irmãos vivem em uma casa ampla e que eles adoram. Eles cuidam da casa e curtem cada cômodo. Um dia, sem mais nem menos, uma parte da casa é tomada. Em seguida outra e outra. Até que os irmãos se veem expulsos de casa, com uma mão na frente e outra atrás.

Em nenhum momento Cortázar revela o quê ou quem tomou a casa, apenas o fato dela ter sido tomada e o conformismo dos irmãos, que vão abdicando das partes tomadas como se fosse a única coisa que pudessem fazer.

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Pois bem, São Paulo é uma cidade que foi tomada. Nos últimos 15 anos o trânsito da cidade foi se tornando cada vez mais intransitável. Mudei de cidade para fazer faculdade e quando voltei, em 2008, costumava parar o carro depois de mais de uma hora no trânsito, para esperar que a coisa voltasse a andar, me perguntando como a situação tinha piorado tanto em apenas quatro anos e como as pessoas achavam aquilo normal.

Vivemos no Brasil um fenômeno em que os carros se expandem com tamanha velocidade e quantidade que as cidades se tornam grandes estacionamentos e congestionamentos. Onde estacionar o carro é a grande questão, seja para ir à padaria, a um show ou ao trabalho. Comércio é fechado, prédios históricos são demolidos porque estacionamentos são mais lucrativos.

A outra grande questão é como escapar das imensas filas que se espalham pelas cidades. São Paulo, Rio, BH, Porto Alegre, Florianópolis? Cidades tão lindas, tão intensas, com vistas deslumbrantes, estilos únicos. E tão impossíveis de transitar.

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É ridícula a velha afirmação de que brasileiro ama carro. Brasileiro não ama carro, brasileiro depende do carro para ir e vir com segurança e tranquilidade. Já que o transporte público é ruim, indigno e caro, é melhor comprar um carro.

Com a ascensão da classe C e D e uma política pública que só enxerga carros, não pessoas, muitos fazem sacrifícios para comprar seu carro, escapar da saga sem fim dos ônibus que mais parecem latas de sardinha em que todos trafegam absolutamente desconfortáveis e sem segurança. É prioridade escapar dessa rotina terrível para muita gente. Não é amor a carros. É pavor do transporte público.

Não pode ser normal passar quatro horas no trânsito todos os dias. Não pode. A prefeitura de São Paulo viu essa situação evoluir ao longo dos anos e não fez nada. Não fez trem de superfície e inaugurou apenas meia dúzia de estações de metrô que já começam a funcionar atendendo uma demanda superior à sua capacidade.

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Não existe duplicação de via ou construção de corredor de ônibus que resolva o transporte numa das maiores cidades do mundo em que os ciclistas e pedestres são violentados e o carro é a única opção.

O direito de ir e vir é um dos mais fundamentais do ser humano. Está diretamente ligado à ideia de liberdade. Ser livre para ir como quiser, aonde quiser, como quiser. Assim também é o direito de se manifestar. Não há ser humano que seja capaz de viver sem manifestar seus sentimentos e ideias, seja de que forma for.

Recentemente, em férias, acompanhei em Berlim uma manifestação a favor de alimentos orgânicos. Garoava e a massa se aproximou de uma das principais ruas da cidade com guarda-chuvas coloridos, faixas, música e enquanto alguns caminhavam tranquilamente, outros dançavam e a polícia acompanhava ao lado, tranquila.

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Era lindo de ver. Assim como é lindo saber que finalmente os moradores de São Paulo cansaram de não reagir. Quem sabe depois tomem as ruas exigindo trem de superfície, metrô, ciclovias, transporte de qualidade com opção e preço justo, afinal quem paga uma das maiores cargas tributárias do mundo merece ir e vir em paz.

Não ter carro é um luxo que o brasileiro ainda não compreende. Mas um dia vai compreender. Assim como as pessoas vão sim entender que os 20 centavos de que tanto se fala são apenas um estopim. Manuel Castels estava em SP no dia da manifestação de quinta, a mais violenta. Recomendo muito a leitura do que ele escreveu sobre o assunto.

Castels disse que a questão em São Paulo não é sobre o transporte. Esse é só o fato que traz à tona uma indignação maior que revela que os cidadãos do mundo, seja aqui, na Turquia ou na Grécia, não se sentem representados pelas instituições democráticas. Se sentem desrespeitados por elas. E por isso a manifestação assume vários motivos, conforme cada pessoa se sente.

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“O que muda atualmente é que os cidadãos têm um instrumento próprio de informação, auto-organização e automobilização que não existia. Antes, se estavam descontentes, a única coisa que podiam fazer era ir diretamente para uma manifestação de massa organizada por partidos e sindicatos, que logo negociavam em nome das pessoas. Mas, agora, a capacidade de auto-organização é espontânea. Isso é novo e isso são as redes sociais”, disse Castels.

Quem sabe um dia São Paulo seja só motivo de amor e de orgulho, um lugar que pessoas do mundo inteiro queiram conhecer pela vida cultural, pela noite, mas também porque vão poder usar o transporte público, excelente, sem pensar duas vezes. Quem sabe um dia o ódio pelo trânsito interminável fique para trás junto com a lenda do amor dos brasileiros por carros. Quem sabe um dia eu diga a meus filhos “já levei duas horas para ir da Consolação até Pinheiros” e eles riam e achem isso ridículo e passado demais.

Vou contar então das manifestações, das balas de borracha e do gás lacrimogênio. Dos amigos que abriram as casas para abrigar outros amigos, manifestantes. E eles vão ouvir como eu ouço sobre a Segunda Guerra Mundial. Sem conseguir conceber que aquilo tudo seja verdade, mesmo sabendo que é.

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Não custa sonhar. Ver que o mundo inteiro manifesta apoio a essa causa é tão bonito faz até pensar que, apesar de todos os pesares, ainda podemos sonhar juntos.

Locais com protestos marcados nas redes sociais pelo mundo:

Visualizar Pelo mundo: grupos organizam protestos contra aumento das tarifas de ônibus no Brasil em um mapa maior