O Ministério da Saúde divulgou nota técnica propondo novas diretrizes de políticas nacionais de saúde mental e de drogas. Um dos itens mais polêmicos é o uso da eletroconvulsoterapia, a ECT. A técnica pressupõe um estímulo elétrico que gera uma convulsão que constitui o elemento terapêutico.

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No meio médico, o termo e a sigla ECT amenizam a palavra eletrochoque que remonta aos tempos em que era também usado como meio de tortura e de punição. No imaginário de parte da população persiste a imagem do doente acordado, amarrado numa maca, recebendo choque através de placas colocadas na cabeça, gritando e se contorcendo de dor.

A princípio, a ECT só deve ser aplicada como terapêutica no tratamento de algumas patologias psiquiátricas resistentes à medicação, como casos profundos de depressão com risco de suicídio, bipolaridade, esquizofrenia. Nos últimos anos a técnica sofreu modificações, como aplicação de anestesia e de relaxante muscular no paciente.

Durante o procedimento, que demora em média 30 minutos, o paciente dever estar acompanhado de uma equipe que inclui médico anestesista, psiquiatra, profissional da enfermagem.

Apesar das promessas de humanização, a norma sofre pressão. Ao ponto que dias depois de publicada no site do Ministério da Saúde foi retirada. O texto estaria agora em consulta interna no Sistema Eletrônico de Informações (SEI) para receber contribuições de servidores do ministério e de outros órgãos, como o Conselho Nacional de Secretários de Saúde e Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde.

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Há muita desconfiança acerca da banalização do método e da efetiva fiscalização dos serviços na rede pública. Depois de chegar à versão final, o documento precisará ser aprovado pela diretoria da área e pela secretaria. Não há uma data prevista para a implementação.

Batalha antimanicomial

Em linhas gerais o texto de 32 páginas propõe o fim de serviços abertos e de base comunitária, como os Centros de Atendimentos Psicossociais (Caps). Esses passam a ser substituídos pelo tratamento com base na medicalização e internação em hospitais psiquiátricos, inclusive crianças e adolescentes.

O documento se opõe ao que prega a luta antimanicomial, a qual dura mais de 30 anos, e tem como um dos objetivos combater violações humanas praticadas nos hospitais psiquiátricos.

Outro ponto das críticas é a criminalização do usuário de drogas. A abstinência é recomendada como solução. Há temor de que a proximidade do governo com setores neopentecostais crie um terreno favorável à internação.

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Além disso, cerca de 90% das comunidades terapêuticas estão vinculadas a entidades religiosas e estão centradas na abstinência e na ideia de que "Jesus é o grande salvador".

Em junho do ano passado, o Conselho Federal de Psicologia emitiu um relatório sobre as violações encontradas em inspeções nessas comunidades, a maioria ligada a instituições religiosas. Entre as violações identificadas estão: privação de liberdade, trabalhos forçados e internação de adolescentes e castigos físicos severos.

Hospital
(Foto: Arquivo/Agência RBS)

Santa Catarina dispõe de 593 leitos

A psiquiatra Caroline Galli Moreira é coordenadora Estadual de Saúde Mental da Secretaria da Saúde e aguarda para ver se as propostas do governo federal terão impacto no atendimento psiquiátrico em Santa Catarina. Com um único hospital especializado, o Instituto de Psiquiatria, em São José, na Grande Florianópolis, o Estado dispõe de 593 leitos para portadores de transtornos mentais e sofrimento pelo uso de álcool e outras drogas.

No IPQ são 160 leitos, sendo os demais no modelo hospital geral. Para crianças e adolescentes existem 14 leitos no Hospital Infantil Doutor Jeser Amarante Faria, em Joinville.

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Antiga reivindicação da comunidade médica, o Hospital Infantil Joana de Gusmão, na Capital, não foi habilitado. Quando há vagas, os médicos usam os leitos pediátricos para criança ou adolescente. Quando isso não ocorre, o único jeito é aguardar na fila de espera do hospital de Joinville.

Ainda não se sabe o impacto da nota técnica, caso seja aprovada da forma inicialmente formulada, no atendimento aos catarinenses. No aguardo de definições, a coordenadora defende a ideia de investir em atenção básica, a porta de entrada dos usuários no sistema de saúde.

Política é vista como retrocesso histórico

O Conselho Federal de Psicologia (CFP) manifestou repúdio à nota técnica. Existe preocupação com o avanço do conservadorismo protagonizado pelo governo em diferentes setores, como na Educação e na Saúde, e a redução de recursos para as políticas públicas sociais que já atingem o SUS. A reportagem ouviu a representante do CFP no Conselho Nacional de Saúde (CNS), conselheira Marisa Helena Alves.

— Colocar o hospital no centro de um sistema para tratar doente mental é um retrocesso. O modelo de hospital psiquiátrico construído desde o século passado é excludente, retalhador e sustenta a privação de liberdade — observa.

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Para a psicóloga, o hospital psiquiátrico é um lugar de produção e manutenção de doença e de exclusão, e não de saúde, como deveria. Maria Helena entende que lançar uma nova política de saúde mental dessa forma é voltar 100 anos na história e desconsiderar toda uma luta que foi feita por muitas pessoas, várias entidades e diferentes organismos comprometidos com a defesa dos direitos humanos ao longo dos 30 anos.

Com relação ao eletrochoque, Marisa Helena diz que é uma falácia a promessa de que o financiamento vai possibilitar o acesso das pessoas com mais dificuldades financeiras:

— Mesmo sem questionar a técnica e a validade científica ou não, a história nos mostra que o eletrochoque em ambiente hospitalar manicomial só apresenta prejuízos e sempre é visto como objeto de tortura aos pacientes.

Para a conselheira, financiar novas aparelhagem e novas tecnologias a serem utilizados em ambientes manicomiais é desperdiçar aparelho, técnica, ciência. Isso porque o modelo exilar não comporta nenhum tipo de tecnologia, já que é feito para o isolamento e violação de direitos.

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Parte disso está no relatório de uma vistoria do Conselho Federal de Psicologia sobre as violações encontradas em inspeções nas comunidades terapêuticas, em maioria ligada a instituições religiosas.

Conforme Maria Helena, 28 estabelecimentos das cinco regiões do Brasil foram vistoriados em outubro de 2017, em ação conjunta com o Ministério Público Federal (MPF) e o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), onde foram registrada privação de liberdade, trabalhos forçados, internação de adolescentes e castigos físicos.

Associação de psiquiatria catarinense vê técnica como possibilidade de salvar vidas

A psiquiatra Lilian Schawanz Lucas, presidente da Associação Catarinense de Psiquiatria, defende o uso da eletroconvulsoterapia. A posição é consenso entre os cerca de 250 associados da entidade.

Para ela, a técnica ajuda a salvar vidas quando esgotadas outras formas de tratamento que não se fizeram eficazes e também onde há risco de suicídios. A psiquiatra entende que se criou muita desinformação acerca da técnica, consequência de mau uso feito anos atrás:

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— Nenhum profissional quer torturar ou amontoar pacientes em um hospital psiquiátrico, mas utilizar o que é cientificamente comprovado como capaz de tirar o paciente de uma crise profunda de onde ele não consegue sair com outros tratamentos.

Além disso, diz, trata-se de um procedimento seguro e não utilizado para todos os casos.

— É como se o computador fosse reiniciado — compara.

A psiquiatra explica que a ECT continuou sendo usado no sistema privado. Em média, uma sessão custa em torno de R$ 1 mil e a pessoa nem precisa estar hospitalizada. Conforme ela, hospitais da rede pública suspenderam o tratamento devido à política de saúde mental implantada no país.

Com a oferta para o SUS – hospitais que atendem pessoas com doença mental poderão comprar equipamentos – pacientes com menor poder aquisitivo poderão ser beneficiados. A respeito da fiscalização, a psiquiatra lembra que isso deve ser feito pelo Ministério da Saúde.

A psiquiatra não acredita na banalização do tratamento. Mas sugere que as pessoas busquem profissionais sérios e centros especializados. A médica critica a redução de leitos hospitalares no Estado, inclusive para crianças e adolescentes, o que só existe em Joinville.

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Ela diz que, sem tratamento, muitos doentes mentais viraram moradores de rua. Além de que mais de 10% das pessoas que formam a massa do sistema prisional é doente mental.

— Temos demanda reprimida, casos em que a família espera muito tempo para internar. Para onde vão essas crianças? Andam por aí, piorando, agravando o caso, trazendo risco para si e para outras pessoas. Precisamos oferecer tratamento ambulatorial, tratamento para paciente crônico, hospitalização e, se for o caso, uso de eletroconvulsoterapia.

Ações em rede dão resultado positivo à ressocialização

A falta de discussão pública inclusive das instâncias de controle social do SUS – em conselhos municipais e estaduais de saúde – causou descontentamento entre as entidades representativas de profissionais, grupos de pesquisa e núcleos do movimento antimanicomial.

Além disso, vários pontos na nota técnica em questão são contraditórios e dão a entender que as ações da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) desde a implantação não tiveram êxito, o que não é verdadeiro. A observação é da enfermeira Adriana Moro, doutora em Políticas Públicas e coordenadora do CAPS I, em Mafra.

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Os CAPS são o eixo estratégico da atual política de atenção à saúde mental no país. Formados por equipes multiprofissionais voltadas às pessoas em sofrimento psíquico grave (CAPS II) e àquelas com necessidades decorrentes do uso de álcool e outras drogas (CAPS AD) estão presentes em todas as regiões do Estado.

O serviço oferece também atenção a crianças e adolescentes (CAPS I). O objetivo é evitar ao máximo a internação, como preconiza a lei da reforma psiquiátrica (Lei número 10.216). A norma determina que "a internação, em qualquer modalidade, só será indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes".

O CAPS do município dão atendimento coletivo e individuais, possui grupos terapêuticos para mulheres, dependentes químicos e familiares de dependentes químicos, grupo de gestão autônoma de medicamentos, de atividades de vida diária, também reabilitação com dança, atividades físicas, terapias integrativas, como auriculoterapia, acupuntura, arteterapia e música. Além do atendimento médico e de enfermagem, serviço de psicologia, terapia ocupacional e serviço social.

Conforme a enfermeira Adriana Moro, vários pontos na nota do Ministério da Saúde são contraditórios, deixando entender que as ações da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) não tiveram êxito, o que não é verdadeiro.

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— A Reforma Psiquiátrica Brasileira, delineada com respaldo popular, é considerada por vários especialistas umas das melhores do mundo, apesar do sucateamento dos CAPS, como falta de equipe especializada em hospitais.

A enfermeira questiona a exigência de uma taxa de ocupação de 80% para repasse integral do incentivo de custeio para leitos psiquiátricos em Hospitais Gerais, pois acredita que isso possa estimular toda a rede a produzir permanentemente novas internações como nos tempos dos antigos manicômios. Assim também como o estímulo a formação de equipes ambulatoriais especializadas, as quais o custeio das mesmas é maior que o atual repassado para os CAPS, o que leva crer que os gestores preferirão ter equipes ambulatoriais do que os CAPS.

Outra preocupação da nota diz respeito a internação de crianças, que poderá ser feito em hospital psiquiátrico e caso necessário até mesmo junto com adultos, o que fere o Estatuto da Criança e do adolescente.

"Eu assisti a choques e nunca consegui esquecer"

Depoimento de um ex-funcionário da antiga Colônia Sant'Ana

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"Na década de 1970 trabalhei no Hospital Colônia Sant ’Ana. Criado em 1941, era o lugar da institucionalização da loucura em Santa Catarina. Localizava-se em São José, na Grande Florianópolis, e recebia pacientes de todos os lugares do Estado. Era comum a gente se deparar pelos corredores com pessoas tendo convulsões, algumas inerentes às doenças.

Mas foi quando assisti a duas sessões de eletrochoque que tive noção da barbaridade cometida através de um método na época considerado aceitável por alguns profissionais da saúde: era uma violência sem igual. O paciente urinava e defecava nas roupas.

Ali, diante daquele quadro degradante, entendi o motivo pelo qual alguns funcionários ameaçavam pacientes com o choque: ninguém, por mais louco que fosse, queria passar pela sessão. A intimidação funcionava como uma tortura psicológica para os pacientes, muitos abandonados pelas famílias.

Durante a sessão de eletrochoque os pacientes eram acompanhados (ou deveriam) por alguém da saúde, porém, quem os preparava eram normalmente os guardas do hospital: cabia a eles colocar os eletrodos nas têmporas das pessoas, assim como borracha na boca, pois a pessoa salivava muito e corria o risco de morder ou enrolar a língua. Lembro que o paciente precisava ficar de lado após a convulsão para evitar asfixiar-se com a secreção, comum nas convulsões.

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Eu me senti muito mal vendo aquilo. Minha vontade foi arrancar o paciente dali, mas a gente sequer podia tocar na cama, que era de ferro, e passaria a corrente elétrica para nós. Era desesperador. Admito que vi casos de pacientes com quadro de agitação-psicomotora, depressão e catatônicos melhorarem depois do choque, pelo menos por um tempo. Depois precisavam de nova sessão.

Na época, a preparação do paciente não era realizada com anestesia, mas calmantes (Benzo diazepínicos) que atenuavam o sofrimento. Eu particularmente acho muito estranho que justamente agora, momento em que tantas práticas de atendimento humanizados são considerados 'ideológicas' pelo atual governo, venham propor a volta do choque através do SUS.

Eu temo que atinja também o sistema prisional, onde tem grande número de pessoas com transtornos e que usam medicação controlada. São pacientes que, em geral, tomam remédios por anos e anos sem uma reavaliação psiquiátrica, o que cria uma total dependência. Eu acredito que práticas assim possam se banalizar nas prisões e ser usada como coação.

Além da questão da falta de estrutura: ou alguém acha que vai ter anestesia, um enfermeiro ou mesmo um médico que possam ajudar a reanimar no caso de uma parada cardíaca nos presidiários brasileiros? Hoje, nem acompanhamento os detentos que usam medicamento tem. Eu vi gente tomando choque.

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E não esqueci jamais."