Ao chegar em casa em Porto Alegre após o jogo da noite em Bento Gonçalves, o árbitro Márcio Chagas da Silva encontrou a mulher, Aline, dormindo. Estava sob forte efeito das agressões racistas sofridas no estádio horas antes na Serra. Ofensas do tipo “macaco safado” e “volta para a selva, negro” que ouvira na partida não lhe saíam da cabeça. Queria desabafar, mas não acordaria a mulher no início da madrugada. Foi ao quarto do filho, Miguel, de 10 meses, que também dormia, e decidiu: não se calaria diante da humilhação.

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Lembrou que há quase 10 anos, em 2005, sofrera os mesmos xingamentos em jogo do Encantado contra o Caxias, no Estádio Centenário. Na época, o técnico Danilo Mior, do Encantado, o chamou de “negrão coitado”. Márcio relatou em súmula e Danilo acabou suspenso por 60 dias pelo tribunal da Federação Gaúcha de Futebol (FGF). Zero Hora contou a história daquela agressão. Márcio comentou:

– Esses casos acontecem sempre na Serra. É muito difícil trabalhar lá.

Agora, o árbitro volta a sentir a revolta. Passado tanto tempo, continua a suportar o estigma de ser árbitro negro no interior gaúcho.

– Pensei: não quero que meu filho sofra o mesmo daqui a 10 anos – murmurou o árbitro.

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Foi para o notebook, queria redigir a súmula e, com tanta revolta, não sabia por onde começar. Iniciou a redação e resolveu transformá-la em e-mail, que enviou como um desabafo a amigos. A súmula faria depois.

Diz assim a mensagem, escrita na madrugada:

“Ontem à noite (quarta-feira) fui recebido de forma hostil, algo que não é novidade, mas também com insultos racistas desde a entrada em campo (…). Fui chamado por parte de torcedores do Esportivo com as seguintes palavras: “Macaco safado ladrão, volta para selva negro imundo”. Além destes elogios todos, meu carro foi amassado a pontapés nas portas e arranhado com algum objeto contundente, sendo que colocaram bananas por cima do carro e no cano de escapamento (…) Fica o triste registro do ocorrido! Márcio Chagas.”

Ontem, Márcio Chagas de novo se emocionou ao lembrar de Miguel dormindo.

– Eu pensei em parar de apitar – disse ele. – Qual o mundo que o meu filho vai encontrar? – Não sou eu o errado. Decidi desabafar, é a melhor forma de ajudar Miguel.

Reveja a reportagem sobre racismo publicada por ZH em 2005: