Vírus que permaneceram em estado de dormência por mais de 50 mil anos apresentam o potencial de serem reativados devido às mudanças climáticas. Quem descobriu essa possibilidade foi o virologista Jean-Michel Claverie, de 73 anos, junto com sua equipe que têm se dedicado à pesquisa dos vírus “zumbis”, patógenos encontrados na região conhecida como permafrost, na Sibéria.

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A relação do aquecimento global com o ressurgimento desses vírus se dá pela redução das calotas polares com as temperaturas mais elevadas. Após derreter, o gelo pode revelar ou, melhor, “acordar” esses agentes nocivos. No ano passado, a equipe do virologista divulgou pesquisas relacionadas a esses vírus antigos.

O estudo revela que apesar da sua longa “idade”, todos ainda mantiveram sua capacidade de infecção. Em uma entrevista concedida ao jornal Japan Times, o virologista explicou que, até então, estávamos mais propensos a pensar nos perigos provenientes das regiões tropicais. “Agora, estamos percebendo que há um potencial perigo advindo do norte, à medida que o permafrost descongela e libera microrganismos, bactérias e vírus”, ele afirmou.

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Claverie inicialmente demonstrou, em 2014, que vírus “vivos” podem ser extraídos do permafrost siberiano e revividos com sucesso. Para garantir que não houvesse risco de contaminação humana, a pesquisa se concentrou exclusivamente em vírus capazes de infectar amebas.

A partir dessa descoberta, ele começou a perceber que a ameaça à saúde pública, indicada pela pesquisa, havia sido subestimada e anteriormente considerada uma raridade. Com essa conscientização, em 2019, sua equipe isolou 13 novos vírus, incluindo um que estava congelado sob um lago por mais de 48.500 anos, a partir de sete diferentes amostras antigas de permafrost siberiano.

Como foi a pesquisa que descobriu os vírus “zumbis”

Os resultados publicados no ano passado indicam que uma infecção por um vírus desse tipo poderia levar a resultados “desastrosos” para a saúde pública. Um exemplo dessa ameaça emergente ocorreu na Sibéria em 2016. Durante um período de calor intenso, esporos de antraz foram ativados, resultando em dezenas de infecções e causando a trágica morte de uma criança, além de afetar milhares de renas.

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Com a publicação da pesquisa em 2022, a equipe alertou para o perigo real do ressurgimento de patógenos virais desconhecidos:

— 50 mil anos atrás no tempo nos levam à época em que o Neandertal desapareceu da região. Se os neandertais morressem de uma doença viral desconhecida e este vírus ressurgisse, poderia ser um perigo para nós — explica Claverie.

Surpreendentemente, estudos publicados na revista Nature em 2021, revelaram que um mero grama desse solo abriga milhares de espécies de microrganismos em estado de dormência. O permafrost, que uma vez abrigou uma rica vida animal, oferece as condições ideais para a preservação de matéria orgânica.

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O que é o “permafrost”?

Naturalmente, o permafrost é escuro, carente de oxigênio e caracterizado por uma atividade química extremamente limitada. Na Sibéria, pode atingir profundidades de até um quilômetro – um fenômeno exclusivo que não se verifica em nenhum outro lugar do mundo – abrangendo cerca de dois terços do vasto território russo.

A dimensão geopolítica também contribuiu para atrasar os estudos. Organizar expedições à Sibéria e manter colaborações com laboratórios russos já representava um desafio considerável antes do início do conflito entre o país e a Ucrânia. Contudo, atualmente, as comunicações com ex-colegas e parceiros russos praticamente cessaram.

Sibéria e a relação com o vírus “zumbi”

Os impactos do aquecimento global na Sibéria representam uma dicotomia de desafios e oportunidades para a economia russa. O degelo do permafrost, estimado em ameaçar cerca de US$ 250 bilhões em infraestrutura, já demonstrou contribuir para incidentes ambientais, como o derramamento de petróleo em Norilsk em 2020, à medida que o solo torna-se instável.

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No entanto, não há apenas desvantagens. A região possui uma vasta riqueza de recursos naturais, como carvão, gás natural, ouro, diamantes e minério de ferro. Diferentemente de outras regiões com permafrost, como o Alasca e a Groenlândia, a Rússia tem se destacado na exploração desses recursos, com escavações em andamento.

Há preocupações em relação à exploração russa da região, como a usina nuclear flutuante Akademik Lomonosov, que pode transformar áreas previamente inacessíveis na costa da Sibéria em centros de mineração, à medida que as rotas livres de gelo no Círculo Ártico aumentam a acessibilidade.

Os cientistas temem que a mineração em tais profundidades, além da camada ativa que descongela a cada verão, possa aumentar a probabilidade de interação humana com patógenos antigos potencialmente perigosos. Isso coloca em destaque o dilema intrínseco à pesquisa, em que a busca por entender ameaças pode inadvertidamente ampliar o perigo. A possibilidade de contaminação cruzada durante expedições de amostragem é elevada, levando alguns pesquisadores a advogar por abordagens menos intrusivas e ávidas por recursos.

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Monitoramento poderia resolver o problema do virús “zumbi”

Claverie observa que seria aconselhável estabelecer um sistema especializado para monitorar a população inuíte (“o povo”, na língua Inuktitut, são os membros da nação indígena esquimó que habitam as regiões árticas do Canadá, do Alasca e da Groenlândia), a fim de rastrear as doenças que contraem, pois isso permitiria uma detecção mais rápida de eventuais patógenos liberados pelo permafrost.

Algumas organizações estão atentas a esse risco. Recentemente, a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional abandonou um projeto de US$ 125 milhões que visava rastrear vírus no sudeste Asiático, África e América Latina, devido a preocupações de que a pesquisa em si possa desencadear uma pandemia.

Entretanto, Claverie já decidiu que não retornará à Sibéria, independentemente do resultado da guerra, afirmando que o perigo está presente e que novas expedições para desvendar segredos nas profundezas congeladas seriam imprudentes.

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