Como quase qualquer um que se interesse por música, músicos profissionais costumam gostar de gêneros e estilos diversos; mesmo quando focam seu trabalho em apenas um ou poucos deles – não à toa, quando um artista decide sair da zona de conforto e explorar sonoridades diferentes em um novo álbum, a ousadia pode ser tanto louvada quanto vista com estranhamento pela crítica e mesmo pelo público, especialmente aquele mais fiel, acostumado a ver os artistas de que gosta trabalharem sempre dentro de uma determinada esfera musical. O choque é especialmente forte quando compositores, cantores e instrumentistas atravessam a fronteira entre as música erudita e popular, indo de um dos lados para o outro.
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O violonista Felipe Coelho, natural de Florianópolis, se identifica bem com essa situação: "Às vezes parece que os dois mundos não se cruzam: o do Felipe concertista, e o do Felipe que gosta de Michael Jackson, de U2." Nomeado "um dos mais importantes violonistas brasileiros da nova geração" pela revista Guitar Player em 2017 e vencedor do troféu de Melhor Instrumentista Catarinense pelo Prêmio Música SC em 2014, Felipe já participou de mais de 40 festivais de música e realizou doze turnês com seus trabalhos autorais, além de ter sido convidado a se apresentar como compositor e solista por diversas orquestras dentro e fora do Brasil.
Agora, porém, Felipe decidiu fazer aqueles dois mundos finalmente se encontrarem: no começo de abril, ele lançou Uanamasi, seu sétimo álbum autoral, em que explora certos elementos – vocais, nuances eletrônicas, uso de samplers – pela primeira vez. O disco procura quebrar moldes previamente estabelecidos da música instrumental de concerto, trazendo à tona experiências vividas pelo artista como cantor de banda na adolescência, além da influência norte-americana adquirida em um período de nove anos morando e estudando nos Estados Unidos.
"Eu normalmente tenho essa tendência a ir pela música de concerto, pela técnica, por querer tocar internacionalmente como concertista: sempre carreguei esse ideal auto-imposto", conta Felipe. "Sou músico formado academicamente, fiz meu mestrado em jazz, então existe essa cobrança. Mas eu também gosto de artistas pop, artistas do hip-hop. Sou apaixonado por jazz, mas entendo que é um estilo menos popular no Brasil, principalmente entre os mais jovens. Se eu também gosto de outras coisas, mais acessíveis, por que não explorar também essas sonoridades, que se comunicam com mais gente? Acho que focar menos no lado concertista é até uma coisa que vem com uma maior maturidade, porque pra fazer isso é preciso deixar o ego um pouco de lado."
O curioso é que, ao contrário do que pode parecer, Uanamasi não surgiu especificamente com esse ideal: o projeto nasceu a partir de uma tentativa de patrocínio pela Lei Municipal de Incentivo à Cultura, de Florianópolis. Depois de um ano de tentativa frustrada, o projeto foi então aprovado para patrocínio pela Lei Rouanet. "Sabe, quem trabalha com música precisa lançar iscas ao mar o tempo todo, mesmo quando não sabe bem ainda qual é o conteúdo que vai gravar", Felipe afirma. "Você propõe um título e tenta o financiamento. E confesso que essa foi a primeira vez que eu consegui um patrocínio para uma coisa que eu ainda não sabia bem o que seria. (risos)"
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Na época, o violonista estava trabalhando em um projeto com a Camerata Florianópolis, o Suíte Linguagens. "Toda minha criatividade estava focada nisso", ele relata. "Fiquei uns três meses escrevendo arranjos, me preparando. Quando o show passou, eu já precisava estar quase entregando o novo projeto."
Ainda sem saber bem o que sairia disso, Felipe decidiu encarar o estúdio. "Hoje em dia existe uma tendência no mercado musical a trabalhar singles em vez de CDs completos", ele explica. "Antigamente, às vezes o artista queria gravar duas ou três músicas boas, mas acabava gravando todo um álbum só para poder botar essas músicas no mercado. Então eu pensei em aproveitar essa oportunidade, entrar em estúdio e gravar várias coisas soltas, que depois eu poderia transformar em singles. Por isso o projeto acabou ficando super aberto."

O ponto de partida foram três peças violonísticas que o músico nunca tinha gravado, e que refletem identidades sonoras diferentes: uma peça flamenca, um choro no violão de sete cordas, e uma chacarera, um ritmo latino-americano. "Para ter um disco inteiro, eu ainda precisava de pelo menos mais umas quatro faixas também longas, para poder fechar o tempo ideal", diz Felipe. "Então chamei meu trio (Tiê Pereira no baixo e Richard Montano na bateria), com quem eu já tinha gravado o disco Hora Certa, em 2015. Nós trabalhamos muito bem juntos, temos visões parecidas, muita vontade de estudar, de se dedicar firme a um projeto. Já estamos bem sintonizados."
A diferença é que, no trabalho anterior, os três instrumentistas ensaiaram por cerca de um ano, para, nas palavras de Felipe, "levantar um material super complexo, super cabeça. E, desta vez, fomos para o estúdio sem nada, com a ideia de dar um jeito e fazer a música acontecer. Eu estava com medo de que o CD ficasse uma merda. (risos)"
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Na experiência quase improvisada, as coisas foram as poucos se encaixando. "O Tiê já estava trabalhando com samplers, que é uma coisa muito usada no hip-hop, por exemplo, e trouxe isso para este trabalho", narra Felipe. "Eu também cantei neste álbum, uma coisa que fazia na adolescência, quando tinha banda; mas que hoje faço pouco, em trabalhos violão e voz."
Outra diferença foi desapegar um pouco da possibilidade de reproduzir o material com fidelidade total ao vivo. "Normalmente não 'me passo' no uso de efeitos, de edição", Felipe afirma. "Dessa vez eu deixei esse conceito um pouco de lado e abracei todas as outras possibilidades que essa escolha me ofereceu. Essa decisão abriu um universo enorme. Aí eu chamei o Lucas Romero como convidado especial: é um cara genial que trabalha com essa parte mais eletrônica."
O nome "Uanamasi" é tão livre quanto o conceito musical do álbum: "Eu queria uma palavra inventada que, de forma mais abstrata, intuitiva, representasse os ideais do disco: auto-aceitação, força, impacto. E achei essa sonoridade forte e agradável. Pode parecer que eu estou falando um monte de besteira, mas estou sendo honesto. (risos) Eu queria criar uma palavra, e achei que essa parecia a palavra certa quando chegamos a ela."
Já que o lançamento do sétimo trabalho autoral de Felipe acontece em uma época tão delicada para a cultura, um dos setores mais profundamente impactados pelo novo coronavírus, é inevitável perguntar como a pandemia afetou Uanamasi. "O coronavírus não impactou a produção do disco em si, mas sim todo o projeto de divulgação", o músico explica. "Nós teríamos um show de lançamento no TAC (Teatro Álvaro de Carvalho, em Florianópolis), e estávamos pensando em fazer outras duas apresentações, em Blumenau e Chapecó. Também suspendemos a gravação do clipe: estávamos a caminho de gravar o vídeo de um dos singles, mas agora isso ficou para depois do vírus. Eu pretendia 'chegar chegando' na divulgação, e agora vou ter que divulgar em conta-gotas."
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Felipe não esconde que tem certo receio da recepção que o novo álbum vai ter – nem tanto pelas inovações musicais como um todo, e sim pelas principais influências do disco: "Ele é muito influenciado pela cultura norte-americana, e os Estados Unidos, como país, têm sido muito mal vistos ultimamente, né?", ele comenta. "Com a figura do Trump e tudo mais. Existe uma defesa forte de que 'músico brasileiro tem que fazer música brasileira'. Mas, sendo fiel a mim mesmo, eu tenho que assumir que minha formação musical tem muita influência dos Estados Unidos. E, de qualquer forma, a música brasileira em si já é uma mistura; dos ritmos africanos com a melodia e a harmonia europeias. Essas fusões são super positivas."
Uma celebração da expressão musical por meio da mistura de influências é exatamente o que Felipe Coelho faz em Uanamasi – e a opinião do artista a respeito não poderia ser diferente: "Eu sou um cara muito sem preconceitos em relação à música", ele afirma. "Odeio esses discursos do tipo 'funk carioca é uma merda'; eu acho que é uma expressão artística totalmente válida. A galera descia o pau no Michel Teló, aí o cara foi lá e gravou um disco lindo com o Almir Sater e deixou todo mundo sem saber o que dizer. Acho que não há lugar pra esse tipo de preconceito na música."