Ela casou aos 16 anos, grávida, com um homem oito anos mais velho. De início, o marido parecia “apenas” ciumento. Sempre que ela saía de casa ou conversava com outras pessoas, ouvia do companheiro que estava “querendo aparecer” – na expressão tipicamente gaúcha, acusava a esposa de estar “se fresqueando” para outros homens. Para evitar brigas, ela deixou de visitar até mesmo a mãe e as irmãs. Não tinha amigos que não fossem os do marido, e só interagia com eles quando iam à sua casa. Mesmo assim, se risse um pouco mais alto em uma roda de conversa, receberia do marido, escondido, por baixo da mesa, um forte apertão na mão – sinal de que deveria se conter, “se comportar” mais.

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– No começo eu achava que ele era só impulsivo. Eu justificava as coisas na minha cabeça, os comportamentos dele – diz Maria*, 45 anos. – O agressor sempre te faz se sentir um lixo, depois pede desculpas, diz que estava “de cabeça quente” e que nunca mais vai fazer algo parecido, e você perdoa.

O agressor de Maria também criticava constantemente sua aparência, e fazia de tudo para diminuir a confiança e autoestima da esposa:

– Meu cabelo é crespo, e eu sempre deixava bem curto, porque se deixasse mais longo ele dizia que era feio – ela conta. – Se a gente brigava e eu dizia que ia embora, ele dizia que ninguém ia me querer, que eu era sozinha no mundo, que nem minha mãe gostava de mim… Ele criava uma sensação de que eu só tinha ele, de que ele era o único que “cuidava” de mim. E isso deu a ele cada vez mais poder sobre mim.

Até aqui, já é possível perceber no relato diversas características que caracterizam a chamada violência psicológica: a humilhação, o constrangimento, os constantes julgamentos, o isolamento da vítima de outras pessoas, a manipulação – uma tentativa, que às vezes é inconsciente, de fragilizar alguém a ponto de essa pessoa se tornar dependente do agressor.

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Mas o que caracteriza a tal violência psicológica? Como a violência pode ser não-física?

– Vamos começar pelo o que entendemos por “violência” – explica a psicóloga Graziela Judith Bonatti. – “Violentia”, do latim, significa agir com veemência e impetuosidade, ou “violentus”, aquele que age pela força. Violência também está relacionada a outra palavra do latim, “violare”, que significa desonrar, ultrajar ou tratar algo ou alguém com brutalidade. Portanto, a violência psicológica corresponde sempre a um ato agressivo direcionado a uma pessoa, ferindo sua identidade, sua autoestima, sua capacidade de escolha e sua liberdade. A violência psicológica geralmente se materializa no discurso, com palavras e manipulações agressivas, com o intuito de ferir quem as recebe.

Esse tipo de agressão é tão preocupante que a Organização Mundial de Saúde (OMS) tem uma definição própria para ela: “Qualquer conduta que cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação.”

“Quanto mais íntimo e próximo for o agressor, mais violenta será a situação”, diz psicóloga

Por não deixar marcas no corpo, a violência psicológica é menos visível – e sua identificação pode ser mais demorada. Maria viveu essa demora na pele: foram quinze anos casada com seu agressor. Quando ela começou a sair de casa à noite para concluir os estudos, o comportamento do marido só piorou:

O que é violência psicológica
Por não deixar marcas no corpo, a violência psicológica é menos visível – e sua identificação pode ser mais demorada (Foto: Tiago Ghizoni)

– Ele aparecia do nada na aula para ver o que eu estava fazendo, porque ele tinha certeza de que eu tinha um caso com alguém – ela relata. – Ele me perseguia nos lugares, me humilhava na frente das pessoas. As brigas dentro de casa eram constantes. Ele também me boicotava: me ligava e dizia que estava saindo de casa e que meus filhos iam ficar sozinhos; então eu saía da aula, largava tudo o que estava fazendo, e ia para casa cuidar deles. Ele fazia isso de propósito.

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– Quanto mais íntimo e próximo for o agressor, mais violenta será a situação – a psicóloga Graziela destaca – Muitas vezes o agressor passa um ar de “segurança” e de “força”, e realmente pode não ser fácil identificá-lo como um agressor; e, mais ainda, confrontar esse agressor. É importante lembrar que agressão não é só alguém gritar ou elevar a voz, mas quando em alguma conversa ou relacionamento eu me sinto desqualificado nas minhas falas ou comportamentos. Se isso acontece, é hora de ficar alerta!

No caso de Maria, as agressões em algum ponto se tornaram físicas – as relações sexuais com o marido, por exemplo, eram forçadas:

– Eu tinha nojo dele, era como se aquele homem deitado ao meu lado fosse um estranho – ela recorda. – Mas eu tinha relações com ele só para evitar a briga que vinha caso eu me recusasse. Uma vez em que eu me recusei, ele abriu a porta do quarto, chamou as crianças e disse que ia me deixar, porque eu “era lésbica”.

Foi só quando foi ameaçada de morte pelo marido – que chegou a inclusive apontar uma arma para sua cabeça – que Maria contou a uma amiga o que estava acontecendo; e, enfim, recebeu ajuda.

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– Na hora ela falou: “Você não vai voltar para casa; esse homem ainda vai te matar”. E eu fui para a casa dela – Maria conta. – Nesse dia eu descobri que ele tinha os contatos de todos os meus colegas, porque ele ligou para todos eles, ameaçando ir na casa deles, me bater, “acabar comigo”. Então eu fui dar parte dele na polícia. E eu me sentia culpada, acredita? É muito estranho: você de fato se sente culpado pelas atitudes do agressor. Eu pensava “será que ele não é doente, será que ele não precisa de ajuda?” Hoje eu acho, sim, que ele é doente. Mas eu não sou a cura dele.

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Ela considera vital a ajuda que recebeu:

– Até porque você não consegue ver o que está acontecendo: aquele é o mundo que você conhece – explica.

– A primeira coisa a fazer ao perceber essa situação de violência é procurar ajuda conversando com pessoas de confiança e que você sinta que realmente te amam; ou seja, que te aceitam e incentivam a ser do jeito que você é – orienta Graziela. – A partir daí pode ficar mais fácil identificar as situações de agressão e violência e agir para se defender. Lembrando que violência psicológica é crime!

Como identificar se você age como agressor

Assim como todos estamos sujeitos a ser vítimas de violência psicológica, todos também podemos, em algum momento, agir como agressores – e a psicóloga Graziela Judith Bonatti explica que é possível se policiar para evitar esse tipo de situação.

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– Tudo o que o outro direciona a nós e nos afeta tem a ver conosco e não com o outro – ela afirma. – Minha tarefa é observar e analisar o que me cabe: por que me senti assim com o que foi dito ou feito? Por que isso me incomoda ou me afronta? O que isso tem a ver com a imagem que eu mesmo tenho de mim? Como eu tenho reagido a situações assim? Com quem aprendi isso? Quando a gente consegue fazer um movimento de pausa antes da resposta, estamos procurando agir com a famosa inteligência emocional. Isso é bem mais maduro do que fechar os olhos e os ouvidos ou bater os pés e gritar minhas razões por aí.

A psicóloga cita os seguintes como pontos de atenção:

– se eu me sinto frequentemente incomodado com pessoas que pensam e agem diferente de mim;

– se, ao apresentar minhas opiniões e ideias, eu procuro agir impondo meu ponto de vista sobre os demais (seja falando muito ou aumentando o tom de voz);

– se estou frequentemente julgando e criticando as pessoas na minha mente, ou me pego falando sobre isso com outras pessoas (que preferencialmente pensem como eu);

– se não tenho paciência para ouvir o outro, principalmente se a opinião dele for muito diferente da minha;

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– se frequentemente interrompo a fala das outras pessoas para apresentar o meu ponto de vista;

– se nego, evito e ignoro perspectivas que são diferentes das minhas.

Exercícios e atitudes que podem ajudar a evitar o comportamento agressivo e violento:

– exercitar o resgate de virtudes como a paciência, a tolerância e a gentileza: nosso diferencial evolutivo está justamente na capacidade de cooperação e generosidade entre os seres;

– acreditar que todos estamos em transformação e evolução: assim como podemos ter aprendido comportamentos não-saudáveis, podemos nos comprometer a mudar e aprender novas formas de ser e se relacionar

– dar uma pausa entre o que aconteceu e a minha resposta: esse exercício de afastamento permite refletir e escolher a decisão mais coerente e responsável;

– praticar a empatia; procurar compreender a perspectiva e os motivos do outro: a empatia pode ser praticada demonstrando interesse genuíno, fazendo perguntas e ouvindo as respostas;

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– procurar manter o seu “julgador interno” calado: quanto menos atenção dermos a ele, menos força ele terá e menos necessidade de categorizar a vida entre bons e maus iremos ter;

– começar a se perguntar como pode contribuir para o bem-estar e a harmonia do local onde você mora ou trabalha: pratique a utilização de mais palavras de apoio e incentivo do que de julgamento e crítica

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– procure exercitar a Comunicação Não Violenta, ou CNV; metodologia que busca melhorar os relacionamentos interpessoais com mudanças no modo de se expressar. Existem cursos e materiais à disposição na internet.

Brigas no BBB 21 levantaram a discussão

A expressão “violência psicológica”, ou mesmo “tortura psicológica”, foi tema de muito debate nas redes sociais ao longo das últimas semanas, puxada pelas polêmicas do BBB 21. A edição deste ano do reality show, que começou no dia 25 de janeiro, tem chamado atenção pelos constantes conflitos entre os participantes – e uma das situações que despertou mais discussão na internet gira em torno de Lucas Penteado e Karol Conká.

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> Entenda a briga de Karol Conka e Lucas Penteado no BBB 21

– Violência também se aprende – destaca a psicóloga Graziela Judith Bonatti. – O que está vindo à tona no BBB reflete como cada uma daquelas pessoas aprendeu a se relacionar. Procuro me relacionar confiando ou desconfiando das pessoas? Se já fui muito ferido preciso aprender a me defender para não sofrer, e uma das formas de autodefesa é a agressão.

Leia mais sobre a polêmica do BBB 21 aqui.