Duas vinícolas do Sul do país se uniram e trouxeram uma inovação para o Brasil: a maturação de vinhos no fundo do mar. Para isso, criaram uma espécie de adega no oceano, em que as garrafas são mergulhadas e ficam por meses até que atinjam o ponto de consumo. Depois, são retiradas e comercializadas da forma que saem da água. Todo esse processo é feito na costa catarinense.
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O projeto foi elaborado pelas vinícolas Fama, localizada em São Joaquim, na Serra catarinense, e Videiras Carraro, de Bento Gonçalves, na Serra gaúcha. Com as uvas produzidas a 1.300 metros de altitude, as empresas fabricam as bebidas e, após o engarrafamento, lacram as garrafas com cera — para evitar a contaminação — e as comportam em caixas de aço inoxidável. Na sequência, com auxílio de um barco, as gaiolas são colocadas no fundo do mar, a 12 metros de profundidade.
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Lá, ficam de nove a 12 meses maturando. Durante este processo, elas são retiradas a cada 60 dias e passam por análises laboratoriais físicas e químicas, a fim de verificar a evolução e o processo de envelhecimento.
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Apesar do processo de maturação ser feito de forma conjunta, cada vinícola tem o seu rótulo e o comercializa de forma separada. Neste primeiro momento, 300 garrafas do vinho espumante foram colocadas no mercado, mas a Fama e a Videiras Carraro também testam a imersão submarina de vinhos brancos e tintos.
Por questão de segurança, os empresários não divulgam a praia de Santa Catarina escolhida para o procedimento. A uva utilizada também é um mistério e o fato acaba sendo uma brincadeira entre os apreciadores de vinho, que tentam adivinhar a espécie.
Para além da degustação, o objetivo das vinícolas também é entregar uma experiência visual diferente para cada cliente. E a apresentação dos rótulos é algo que, de fato, chama a atenção. Cobertas de corais, algas e conchas, que se incorporam às garrafas de forma ímpar, a peça pode ainda tornar-se objeto de decoração após o consumo da bebida.
— Não temos uma comparação porque é uma coisa única, garrafa única, vinho único. É um espumante único. Não existe comparação com nada — destaca Jean Carraro, sócio-proprietário da Videiras Carraro.
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Uma brincadeira entre amigos que deu certo
Maristane Greter, sócia-proprietária da Fama junto do esposo, Fabiano Mueller, define o início da sociedade entre as empresas como “uma brincadeira entre amigos que tornou-se algo muito sério”.
Fabiano conta que a amizade entre os casais começou há 11 anos, quando viajou com a companheira para a Serra gaúcha e conheceu a Videiras Carraro. Lá, intensificou sua paixão pelo vinho e contou com a ajuda de Jean Carraro para produzir o próprio vinhedo.
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Durante uma conversa entre eles, enquanto tomavam espumante, levantaram a possibilidade de maturar as bebidas no fundo do mar. Os casais já sabiam que o processo havia sido adotado em outros países e, a partir daí, começaram as pesquisas. Carraro pontua que, como o casal Mari e Fabiano moram no Litoral catarinense, eles mesmos conseguiram fazer os testes e o resultado surpreendeu.
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— Tiramos os primeiros exemplares depois de 16 meses. Foi uma evolução bem diferente da que não foi para o mar, evoluiu mais rápido. Alguns estudos citam que um mês no mar é como se fosse três meses fora do mar — explica Jean Carraro.
Até que o produto estivesse pronto para ser comercializado, as vinícolas contaram com auxílio de profissionais de outras áreas, tanto para fazer a imersão submarina como para experimentar e avaliar a evolução das bebidas que faziam parte do lote teste.
— Nós temos toda uma equipe de apoio por trás, desde barcos para colocação no fundo do mar a quem projeta as gaiolas em que as garrafas são colocadas. Também temos enólogos, pesquisadores e laboratórios de análises que acompanham a gente — destaca Maristane, sócia da Fama.
Os estudos começaram em 2020 e, quatro anos depois, os primeiros exemplares foram colocados no mercado. Antes mesmo do lançamento, já havia uma lista de espera de pessoas curiosas para experimentar o produto e ter a garrafa “personalizada” no fundo do mar.
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Vinícolas jovens, processo antigo
Não há registros históricos que indiquem de forma clara quando se iniciou o processo de envelhecimento subaquático do vinho. No entanto, o método inovador foi moldado por meio de uma descoberta que ocorreu em 1998. Na época, mergulhadores descobriram garrafas de um champanhe com dois séculos de idade no Mar Báltico, onde uma escuna sueca foi afundada por um submarino alemão em 1916.
Alberto Brighenti, professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) de fruticultura e viticultura ainda cita que, mais recentemente, em 2010, houve outra descoberta: uma coleção de 168 garrafas provenientes de renomadas casas de champanhe, como Veuve Clicquot Ponsardin e Heidsieck.
— No total, 30 garrafas de champanhe foram bem preservadas apesar da sua idade, pois foram mantidas a mais de 60 metros de profundidade na escuridão do mar, salvaguardadas por temperatura e pressão mantidas de forma constante. As garrafas foram, posteriormente, leiloadas e vendidas por um preço surpreendente de 15 mil euros cada, atraindo grande atenção de colecionadores de vinhos — relata o professor.
Países como Espanha, Grécia, França, Itália, Estados Unidos e Chile profissionalizaram o método e já comercializam essas garrafas pelo mundo. No Brasil, no entanto, o procedimento é uma novidade.
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A vinícola Miolo foi a primeira a testar este tipo de maturação quando enviou um lote de espumantes para envelhecimento no litoral francês. Já a Fama e a Videiras Carraro são as primeiras do país a testar o método no litoral brasileiro.
— Obviamente que o vinho não aporta nenhuma característica do mar e sim traz um processo de evolução mais rápido. Isso é o que a gente percebe nessas garrafas. Então, é uma adega aquática, uma cave na vinícola. Em vez da gente ter essa cave, a gente coloca esse vinho na cave aquática, na cave do oceano — explica Fabiano, sócio da Fama.
Mistérios do fundo do mar
Para além de vender histórias, o professor Alberto Brighenti cita que algumas pesquisas apontam que fatores ambientais, como temperatura e pressão constantes, ausência de luz e oxigênio, e o movimento das correntes podem conferir efeitos positivos sobre o processo de envelhecimento dos vinhos.
Ele destaca que, para este procedimento, recomenda-se trabalhar com vinhos mais encorpados, que apresentam maior acidez, maior teor de taninos e alcoólico. Isto porque essas características fazem com que a bebida suporte as condições únicas do envelhecimento subaquático. As uvas cultivadas nas Serras catarinense e gaúcha, por exemplo, se encaixam nesses atributos, já que são da espécie Vitis vinifera e, portanto, rendem uma bebida mais encorpada.
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— Declarações de enólogos indicam distinções entre vinhos subaquáticos e vinhos envelhecidos convencionalmente. Em avaliações às cegas, o vinho envelhecido debaixo d’água exibiu um perfil mais redondo e elegante, com aromas de fruta mais frescos. Outras avaliações enfatizam a mineralidade presente e a reminiscência do salgado. Alguns também mencionam o aumento da complexidade e melhora na textura dos vinhos envelhecidos no mar — destaca.
O especialista diz ainda que a crescente procura por vinho envelhecido no mar também impulsionou a discussão do terroir (áreas de cultivo) para o primeiro plano e deu origem ao novo conceito de “terroir aquático”.
— Enquanto o terroir se concentra tradicionalmente na crença de que a terra onde as uvas são cultivadas confere uma qualidade única ao vinho resultante, o terroir aquático introduz a noção de que os oceanos e outras massas de água podem conferir características distintivas aos vinhos envelhecidos debaixo de água — contextualiza.
Bebida complexa
A doutora em ciências dos alimentos e professora de Enologia no IFSC Urupema, Carolina Pretto Panceri, complementa que o vinho é uma bebida complexa, cheia de compostos químicos que reagem entre si, os quais podem ser acelerados ou influenciados por oxigênio, temperatura e luz. Por isso, os locais com condições controladas são sempre bem-vindos para que a velocidade dessas reações de envelhecimento sejam mais lentas e a bebida evolua adequadamente.
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É com base nestas características, segundo Carolina, que o oceano tem entrado no mundo enológico como um potencial local para envelhecimento de vinho, pois é um ambiente que apresenta temperaturas constantes e escuridão garantida.
Por outro lado, salienta, há um efeito de pressão, que desempenha um papel crítico no envelhecimento subaquático. Carolina cita que para o espumante, por exemplo, a profundidade marítima pode ser interessante, já que a a pressão externa se iguala à interna da garrafa, mas para vinhos mais suaves, essa pressão pode destruir o vidro. Outra situação é o movimentos das marés, que ainda não está elucidada se pode contribuir ou acelerar o processo.
— O fato é que comercialmente o processo tem sido utilizado, mas ainda precisa-se de mais estudos para comprovação da viabilidade técnica e também econômica deste processo. Mas com certeza já é possível encontrar exemplares envelhecidos no fundo do mar no mercado com preços, eu diria, bem salgados — pontua.
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