Vik Muniz tem muito a mostrar. Um dos artistas brasileiros de maior visibilidade internacional, ele acaba de lançar Tudo Até Agora | Catalogue Raisonné | 1987 – 2015, caixa com dois volumes que somam 900 páginas e documentam 29 anos de produção em cerca de 1,4 mil obras, entre desenhos, esculturas e fotografias.
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Organizado por Pedro Corrêa do Lago, o novo “catalogue raisonné” – compilação de todos os trabalhos de um artista – atualiza um anterior, de 2009, com as obras criadas nos últimos seis anos. Mas o paulista de sotaque carioca radicado em Nova York há 30 décadas também tem muito a dizer: em quase uma hora de conversa ao telefone com ZH, em meio ao trânsito do Rio de Janeiro e a demandas profissionais e domésticas, Muniz falou com clareza e densidade sobre seu trabalho e arte contemporânea em geral – ecoando no discurso a mesma conjugação de qualidades responsável tanto por seu sucesso de público quanto pela empatia da crítica.
Documentário acompanha Vik Muniz na produção de obra com 20 mil bolas de futebol
Vik Muniz apresenta sua primeira exposição em Porto Alegre
Com trabalhos no acervo de algumas das maiores coleções mundiais particulares e de instituições como o MoMA e o Metropolitan Museum – ambas em Nova York – e a Tate Gallery, em Londres, o autodidata de 54 anos ficou célebre ao criar imagens com materiais inusuais como chocolate, açúcar, diamantes, brinquedos, sucata, lixo, linha, algodão, folhas de jornais e revistas, resina, arame, pregos, caviar, massa de modelar, terra e poeira.
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– Vou de uma coisa a outra, que nem uma bola de fliperama. É uma experiência da abertura do mundo. Tem que procurar sarna para se coçar – resume Vik.
Retrospectiva cultural 2015: o melhor das artes visuais
Seu trabalho com catadores de materiais recicláveis no aterro de Jardim Gramacho, no Rio, foi registrado no documentário Lixo Extraordinário (2010) _ premiado nos festivais de Sundance e de Berlim e indicado ao Oscar da categoria. Em 2014, o Santander Cultural exibiu em Porto Alegre a exposição O Tamanho do Mundo, com cerca de 70 obras suas. Em 2015, participou da 56ª Bienal de Veneza com uma réplica de 14 metros de comprimento de um barquinho de papel, batizado de Lampedusa, que navegou pelos canais da cidade italiana lembrando as tragédias dos imigrantes ilegais que naufragam nas costas da Europa.
Confira algumas obras de O Tamanho do Mundo, mostra que esteve em Porto Alegre em 2014:
Envolvido em projetos simultâneos espalhados pelo planeta – que vão desde a criação de uma obra olfativa para a marca de perfumes Guerlain, em Paris, até a maior retrospectiva de sua carreira, com 120 fotos, no High Museum of Art, em Atlanta (EUA), a ser inaugurada no final de fevereiro -, Vik define com bom humor sua relação com o circuito artístico:
– Não vou à feira de arte assim como boi não fica arrodeando abatedouro.
Confira a entrevista:
Deu muito trabalho fazer esse “catalogue raisonné”?
Todo “catalogue raisonné” é um processo em andamento, você acaba de concluir e ele já está desatualizado. Aliás, fazer um catálogo é descobrir todas as obras que esqueceu de colocar nele. Eu tenho uma obra muito extensa. Não trabalho para fazer uma obra-prima, meu trabalho é feito em séries, incremental. Vou aprofundando na obra seguinte o que fiz na anterior. Por isso, considero que minha obra é a série toda. Meu trabalho tem muito a ver com processo. Para mim, é importante fazer esse levantamento para poder entender a direção que estou tomando. Fiz a primeira parte há seis anos porque não me lembrava do que eu tinha feito. Você vai ficando velho…
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Que percurso artístico esse catálogo aponta?Nos primeiros quatro anos, você está lidando com um artista jovem, que não documenta direito o próprio trabalho e está mais preocupado em sobreviver. Se hoje ainda sou desorganizado, naquela época eu era muito mais! Mas o restante foi fácil, já tinha computador, uma pessoa para cuidar disso para mim. É interessante porque você vai revisitando seu processo de trabalho. Antigamente, eu fazia muitas anotações, desenhos. Hoje não faço mais: faço uma sopa e vou deixando que as ideias coagulem. O catálogo ficou grande, com dois volumes, não é nada ergonômico. Teu conterrâneo Eduardo “Peninha” Bueno (escritor e jornalista) me perguntou: “Por que você não botou rodinhas nisso?”. (risos)
Faz sentido lançar hoje um livro físico desse tamanho?
Sou de uma geração que lida com fotografia e ainda tem uma ligação material com o trabalho. Não lido com tela de computador, meu trabalho é muito físico. Se você pegar toda a história da representação, do paleolítico até agora, a foto é a última membrana física que separava a mente do mundo da matéria. Com a revolução tecnológica, alguém deu uma alfinetada ali e a coisa estourou que nem um balão. Não dá mais para emendar. Meus últimos trabalhos lidam muito com essa questão da materialidade da fotografia. Eu gosto muito de livro, de tocar as páginas, escutar o som das páginas virando. O livro, para mim, é uma experiência multimídia.
Você se surpreendeu ao rever seus trabalhos, tanto positiva quanto negativamente?
Ah, tem coisas que você se arrepende de ter feito! É engraçado, tem coisas que parecem conceitos meio interminados, mas que fazem parte de uma narrativa maior. São quase 30 anos de muita experiência. Sou um artista de uma das primeiras gerações que viveu a vida inteira sob a influência da mídia visual eletrônica. Uma vez, eu falei que tinha mais influência do Chacrinha do que do Hélio Oiticica, e quase me crucificaram. Não nego a influência da mídia de massa no meu trabalho. Quando todo mundo lia Marx na época da ditadura, eu lia Marshall McLuhan (teórico canadense da comunicação).
Ao longo de sua produção, diversas obras realmente tematizam muitos aspectos da teoria da comunicação.
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A história da informação molda e constrói a nossa visão do mundo. Gosto de pintura dos séculos 17 e 18 e de videogame. Essa ansiedade contemporânea de comprimir a história inteira em um tempo contínuo aparece no meu trabalho. Ao mesmo tempo, há uma preocupação dos artistas da minha geração em tentarem se inscrever em um panorama que é volátil. Não tem uma taxonomia para a informação.
Que lugar o artista ocupa na contemporaneidade?
Você tem que fazer uma arte sincera, que não tem que impressionar ninguém. Eu tento impressionar a minha mãe sempre, sou filho único (risos). Fazer o filme Lixo Extraordinário me ensinou muita coisa sobre arte contemporânea. A arte tem a capacidade de fazer você ver o mundo de forma diferente, mesmo retroativamente. Adoro a ideia de fazer uma arte que destoe do que as pessoas veem no dia a dia e que também te faça pensar em outras imagens. A arte tem um aspecto ético, eu vi em Lixo Extraordinário como ela mudava o jeito como as pessoas se viam. A arte humaniza.
TUDO ATÉ AGORA | CATALOGUE RAISONNÉ | 1987 – 2015. De Vik Muniz. Organização de Pedro Corrêa do Lago, Capivara Editora, 902 páginas, R$ 270.