O telefone toca no disque-denúncia da Polícia Civil. O interlocutor diz ter um familiar viciado em jogos e se mostra revoltado com o hábito que está “arruinando a vida dele”. Na sequência, relata o endereço dos lugares clandestinos frequentados por ele. A personagem Silvana, interpretada por Lilia Cabral na novela das 21h exibida pela NSC TV A Força do Querer despertou ações anônimas também na vida real. Assim como na dramaturgia, não faltam dramas verdadeiros causados pela impotência de quem não consegue largar as apostas.

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Estima-se que grande parte das pessoas com vontade incontrolável de jogar tenha mais de 40 anos. Profissionais que trabalham com a coibição e tratamento para o vício na jogatina dizem que o impacto do sofrimento vivido pela arquiteta e familiares na dramaturgia é similar ao da vida real.

Depois da ligação anônima citada acima, investigadores e policiais apuraram os locais mencionados e encontraram máquinas caça-níqueis em um dos pontos. Era um ambiente discreto, residencial e sem chamariz.

Não se sabe se a curto prazo ações como esta irão fazer o viciado deixar de jogar. Jogadores compulsivos sofrem doença comportamental chamada de transtorno de jogo patológico, diz a psiquiatra Lilian Schwanz Lucas, presidente da Associação Catarinense de Psiquiatria.

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– É uma dependência comportamental, segue os mesmos padrões que outras dependências químicas como álcool e drogas. A pessoa tem perda de controle, promete para a família que não vai mais jogar e acaba tendo recaída, joga mais que o planejado, vai tendo alterações como precisar jogar cada vez mais e se fica sem jogar tem desconforto físico, irritabilidade – observa.

Os jogos mais procurados são máquinas de caça-níqueis e o jogo do bicho. Também há situações que envolvem compulsão por apostas em loterias, carteados e jogo na internet, este último considerado o mais recente vilão.

A reportagem acompanhou uma reunião do Jogadores Anônimos em Florianópolis na noite da última quinta-feira. Apesar do pouco número de participantes, foram cerca de duas horas com cenas de emoção, depoimentos de alívio, desabafos, lágrimas, superações pessoais e de reflexão encerradas com bolo, refrigerante, brincadeiras e risadas em tom de confraternização. A irmandade existe desde 2002 na Capital do Estado. Os encontros são realizados três vezes na semana (terças, quintas e sábados) em uma sala na Igreja Nossa Senhora da Conceição. Atualmente, há 25 integrantes e para participar basta ter o desejo de parar de jogar.

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A sala conta com cadeiras posicionadas em semicírculo e uma mesa central onde fica o coordenador. Há cartazes e faixas com a oração da serenidade e frases como “evite a primeira aposta” e “que bom que você veio”. A reunião começa com oração e mãos dadas, leitura inicial e a garantia de confidencialidade e anonimato. Após nova leitura de um dos 12 passos e da reflexão do dia é a vez dos depoimentos.

O participante se apresenta, diz o tempo em que está sem jogar e começa a falar. Entre pontos que chamam a atenção, recomendações para que os compulsivos se desfaçam em casa até mesmo de instrumentos de medição como fita métrica e não comprem nem mesmo rifas. Seriam maneiras de evitar a vontade de relacionar números e apostas.

– Abstinência não é fácil, até hoje vejo resultados de loterias, placas de carros, anos e penso em apostar. É complicado, evito até mesmo qualquer tratativa ou falar com bancos – conta um

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dos participantes.

O segundo integrante descreve o dia em que pensou no suicídio após chegar ao fundo do poço, incluindo dívidas intermináveis, 33 cheques na praça, um carro e um terreno perdido, além da vida sob ameaças de agiotas.

– No começo, achei que aqui fosse um grupo de auto-ajuda financeira. Saía para trabalhar sempre pensando em jogar. Números mexem comigo – relata um dos frequentadores.

Estrutura atrativa ajuda na tentação

No grupo Jogadores Anônimos, não houve aumento da procura desde que o tema passou a ser abordado em novela global. Porém, os participantes afirmam que a discussão ficou mais aflorada com a abordagem do assunto em horário nobre e as recentes discussões nacionais sobre novas tentativas de legalização do jogo no país.

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Já o delegado Marcos Assad, da Gerência de Fiscalização de Jogos e Diversões da Polícia Civil, verificou aumento das ligações de denúncias de pontos ilegais durante a exibição do drama da personagem Silvana. Segundo ele, familiares são os que mais telefonam, na tentativa de afastar mães ou pais dos jogos.

– Houve até relatos de que uma van pegaria idosos nas residências e os levaria para o local do jogo, onde ofereceriam lanches e cafés da tarde para passarem o dia – expõe o delegado.

Ele alerta que esses lugares clandestinos não oferecem segurança, pois normalmente não estão estruturados para receber pessoas e sequer têm extintor de combate a incêndio. Os responsáveis pelo jogo usam apartamentos residenciais, prédios comerciais, mantém janelas fechadas e oferecem comida grátis, o que faz os jogadores não perceberem o tempo passar lá dentro, relata o coronel Araújo Gomes, subcomandante-geral da Polícia Militar:

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– Parentes, filhos, esposas, maridos, costumam travar uma cruzada passando informações para a polícia na esperança de que o parente deixe de jogar – assinala Gomes.

Nos últimos anos, as investigações sobre a máfia do jogo no Estado foram pontuais nas regiões. Houve casos de bicheiros e policiais presos por acobertarem a atividade ilícita em troca de propina.

“O jogador manipula as pessoas”

Com a identidade preservada, um jogador em recuperação conversou com a reportagem sobre o comportamento da personagem Silvana da novela A Força do Querer e a vida real, o drama particular na época das apostas e pontos importantes para abandonar o vício. Confira:

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Teve um momento em que a personagem da novela estava em uma clínica e houve um ato de corrupção em troca de um celular para ela jogar. Há situações assim também na vida real?

É, nós sofremos isso. A compulsão, o jogador manipula as pessoas. Eu mesmo no meu trabalho, quando estava na ativa, pensava: “Para quem é que eu vou mentir hoje para conseguir o dinheiro”. Aí eu chorava, dizia que estava faltando isso ou aquilo. Quando pegava o cheque saía direto para trocar em banca de bicho.

A novela mostra o desgaste da Silvana com os familiares em razão do jogo. É assim na vida também?

É assim. No meu caso eles me apoiaram, mas houve familiares que se afastaram. Aqui no grupo vejo pessoas que sofrem com isso, de o filho dizer: “Vocês não acreditem nesse cara, isso aí é um vagabundo, tá falando isso hoje, mas amanhã está no jogo de novo”.

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Como o senhor definiria a participação da família na recuperação?

Essencial. O primeiro ponto é o apoio familiar. Se não tiver, o ponto para recaída é dois toques.

A personagem Silvana não admite o vício…

O primeiro passo é admitir que eu sou impotente perante o jogo. Se eu não admitir eu vou continuar jogando. Tem que evitar aquelas pessoas e lugares que frequentava. Não pode entrar em lotérica, enfim, esse tipo de coisa.

Há familiares que travam cruzada para tirar a pessoa do jogo, vão na polícia. Que situações extremas o senhor já presenciou?

Tínhamos um companheiro que na época fez uma fuga geográfica do Espírito Santo para cá, um cara intelectual, mas tinha muito envolvimento com jogo de bicho e casa de prostituição. A mulher saiu do emprego, ele inclusive trocou de nome e sempre falava no grupo aqui que tinha vontade de, no café, botar veneno e matar todo mundo (risos). É a vida real. Até hoje tomo remédio porque não consigo dormir. Aquelas ameaças que tive de banqueiros, agiotas, casas de bicho… Isso mexeu muito comigo.

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A internet e os jogos online são dificuldades atuais?

Muito, tem que se policiar muito. Há pais com filhos com esse problema. Isso está pegando muito, com grande perda de dinheiro e tempo.

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