Café, guaraná em pó e bebidas energéticas nem sempre são o suficiente para quem precisa enfrentar milhares de outros candidatos antes de entrar na faculdade dos sonhos e não quer ou não consegue encarar a pressão de cara limpa. Remédios criados com outros propósitos transformam-se em soluções para driblar o cansaço perto do vestibular, mas psicólogos e médicos fazem fortes recomendações contra o que vem sendo chamado de doping intelectual.

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O estimulante mais popular entre os estudantes é o metilfenidato, vendido no Brasil sob as marcas Ritalina e Concerta. Embora este princípio ativo não faça parte do grupo das anfetaminas, o funcionamento no organismo é muito similar a elas e em algumas pessoas causa efeitos próximos aos da cocaína: hiperatividade, hiperventilação, perda do apetite, aceleração dos batimentos cardíacos, boca seca, dores no estômago. Em pouco tempo se adquire resistência à substância obrigando os estudantes a aumentar a dose.

A substância surgiu no fim dos anos 1940 e hoje é de uso controlado na maioria dos países. Ela costuma ser recomendada por médicos a crianças e adolescentes diagnosticados com Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH).

Hoje com 24 anos, o estudante catarinense, que cursa Direito na UFRGS e prefere não se identificar, nunca passou por um psiquiatra e começou a tomar Ritalina quando era vestibulando por indicação da avó, que conseguia o medicamento das mãos de um farmacêutico amigo. No começo uma pílula por dia era o suficiente para obter o efeito desejado. Em pouco mais de um mês, passou para duas.

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– O mundo nos oferece uma quantidade infinita de pequenos estímulos prazerosos: internet, TV, videogame, comida, música. Não aumentei ainda mais a dosagem porque seria como substituir um vício pelo outro: a procrastinação pelo remédio. No fim, assumir uma postura de estudo é o que importa de verdade, não existe solução mágica – conta o estudante, que não toma mais Ritalina desde que foi aprovado no vestibular.

Outros remédios aparecem na lista dos vestibulandos, como o modafinil (por aqui vendido como Provigil), modafinila (com o nome de Stavigile) e o Adderall, um mix de anfetaminas indisponível nas farmácias nacionais. A rivastigmina e a donezepil, dois fármacos para Doença de Alzheimer com severas reações adversas também são usados para o mesmo fim e podem acabar prejudicando o desempenho cerebral de pessoas saudáveis.

Consumo triplicou entre 2009 e 2011

Atualmente, o Brasil é o segundo maior consumidor de metilfenidato, perdendo apenas para os Estados Unidos. Ele chegou às farmácias brasileiras em 1998 e foi rapidamente assimilado pelo mercado. Segundo a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), apenas entre 2009 e 2011, o consumo no Brasil quase triplicou – passou de 156 milhões miligramas para 413 milhões. No mesmo período foram comercializadas 1,2 milhões de caixas do medicamento em farmácias e drogarias do país, representando uma alta de 28,2 % em relação a 2009.

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O laboratório Novartis, que produz a Ritalina, não revela a quantidade do medicamento vendida no Brasil, mas previsões do Instituto Brasileiro de Defesa dos Usuários de Medicamentos (Idum) estimam que elas tenham crescido perto de 3,2 mil % nos últimos 11 anos. Não há estudos sobre a quantidade de metilfenidato que gira pelo mercado negro no país.

Um preço alto pelo gás extra

A professora Daniela Ribeiro Schneider, coordenadora do Núcleo de Pesquisas em Psicologia Clínica (Psiclin) da UFSC, considera preocupante a popularização de substâncias estimulantes e acredita que o problema não seja apenas a automedicação, mas o fortalecimento de uma lógica imediatista.

– É uma tendência contemporânea enxergar o consumo de remédios como uma bengala para todos os problemas da vida. O vestibular é uma época em que isso fica ainda mais evidente, pois o jovem é pressionado a concorrer com dezenas de outras pessoas numa prova que vai mudar os rumos de sua vida – explica Daniela.

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Tadeu Lemos, professor da UFSC e médico especializado em tratamento de dependentes químicos, diz que a sensação de atenção em quem toma o remédio é ilusória, já que não existem estudos conclusivos que relacionem o metilfenidato ao aumento na capacidade intelectual. A própria bula da Ritalina afirma que a ação do medicamento no corpo humano não foi completamente elucidada. Como não há estudos de longa data com o remédio, os efeitos conhecidos são aqueles instantâneos e diminuem com o uso contínuo.

– Quem já está sob uma condição de estresse vai ter mais prejuízo que lucro ao ingerir um medicamento forte como o metilfenidato. Um jovem que toma remédios para passar a noite estudando fará seu organismo funcionar por mais tempo e com mais intensidade, causando um cansaço ainda maior no dia seguinte – explica.

Compras são feitas com e sem receita

Um estudo publicado neste ano pela revista científica americana The Clinical Neuropsychologist constatou que 22% dos adultos com receitas para metilfenidato consultados exageraram a intensidade dos sintomas na hora de conversar com o psiquiatra. Já outros têm perfeita noção de que nunca foram portadores do transtorno de déficit de atenção e mentem para obter receitas de remédios variados.

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O vestibulando de 18 anos, que pediu para não ser identificado, e quer cursar Engenharia Aeronáutica ou Mecânica, pesquisou na internet sobre o medicamento. Como dois psiquiatras negaram prescrever o remédio, a mãe pediu a receita a um médico conhecido.

– Esse amigo dela tem dois filhos e ambos usaram Ritalina quando estavam prestando vestibular. Ele conversou com meus pais, meu deu a receita e comecei a tomar. Estou tomando às 7h e às 14h, há 45 dias, e agora já não vejo muita diferença. Vou experimentar ficar alguns dias sem para ver como será – conta o estudante.

Há também quem apele à ilegalidade para obter o metilfenidato. Numa busca rápida na internet, dezenas de sites que vendem Ritalina e Concerta sem receita são encontrados. A página do Facebook Ritalina-TDAH & TBH, um espaço onde usuários da rede social discutem os efeitos e os riscos do remédio, adverte quem tenta adquirir as pílulas pelo mercado negro online. Para eles, a chance de comprar um produto falso e superfaturado é altíssima. Quem anuncia remédio na página tem o tópico imediatamente excluído.

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– Moro perto de Foz do Iguaçu, é muito fácil pra eu conseguir remédios baratos e sem prescrição médica. Não tive nenhum tipo de acompanhamento e acabei comprando o mais fraco – conta a vestibulanda de 17 anos que toma Ritalina por conta própria desde o início do ano.

Mesmo com prescrição, estudante optou por não usar

Uma estudante da UFSC, que optou não se identificar, conta que começou a tomar Ritalina aos 19 anos quando fazia pré-vestibular. Mesmo com consultas psiquiátricas e uma receita para comprar o metilfenidato, ela fez uso da substância cerca de quatro ou cinco vezes desde aquela época. Dois anos após, ela estuda sem remédio e critica o uso indevido de fármacos entre vestibulandos devido ao comodismo gerado.