Ele cruzou a fronteira com R$ 10 no bolso e um punhado de esperança. A vida costumava ser ótima na Venezuela para José, que tinha uma boa família, empregos estáveis e uma situação confortável até a crise bater na porta e piorar a cada dia. Começou a faltar o básico: comida.
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– Se não tem comida para você viver, é um problema. Você vai ao supermercado, mas não pode pegar nada. Você pode ter dinheiro, mas não tem o que comprar. E o que eles têm, não vendem pelo dinheiro que você tem. Vendem em dólares. Um salário mínimo hoje em dia na Venezuela não paga um frango. Isso é a hiperinflação — conta o jovem de 28 anos, em um português com sotaque latino.
Em 2017, José Carlos Lugo Rojas decidiu cruzar a fronteira e sair da Venezuela. Mudou-se com a mulher, Mayari, após definir em uma noite: "Vou embora. Na segunda-feira eu vou embora".
A segunda-feira acabou virando uma quarta, dia em que os dois foram até a rodoviária e pegaram o ônibus com destino ao Brasil. Cruzaram a fronteira em Roraima, na cidade de Pacaraima, ponto de chegada de milhares de venezuelanos no país.
— Quando falei para a minha mãe ela disse "é mentira, você tá brincando". Nossos pais não acreditavam. Eles sempre querem morar com os filhos, as famílias são muito unidas na Venezuela. Naquela quarta-feira na rodoviária, foi ali que eles sentiram que a gente ia embora. O pessoal chorou muito. Quando cruzamos a fronteira e eu troquei o dinheiro, eu tinha só R$ 10. Quando você tem só isso e não conhece ninguém, tá com medo né? Pensa “meu Deus, o que eu fiz?”. Pensei em voltar pra Venezuela, ainda estava perto. Mas consegui dormir na casa de um amigo venezuelano que estava lá.
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O casal de venezuelanos encontrou um cenário difícil em Roraima. Tantas outras pessoas que, assim como eles, haviam cruzado a fronteira sem nada e estavam em situações precárias na região. Sofreram preconceito, viveram de favor, perderam os R$ 10, mas não aquele punhado de esperança. Foi fazendo bolos em casa e primeiro vendendo fatias na rua, depois bolos inteiros, que José e Mayari juntaram os primeiros trocados e sobreviveram alguns meses em Roraima.
Eles conseguiram até voltar um dia para a Venezuela e levar comida para os familiares que ficaram no país. Depois disso viram a situação piorar em Roraima, com mais conflitos na fronteira, e decidiram seguir viagem. O plano era ir para a Argentina — para evitar as dificuldades da língua —, mas acabaram parando em Manaus após um problema com a passagem que haviam comprado. Lá, conheceram outra pessoa que os indicou Florianópolis. "É ótimo lá, parece a Ilha de Margarita na Venezuela", disseram.
O casal arriscou e trocou a Argentina por Santa Catarina. Deu certo. Chegaram em outubro do ano passado e acharam um lugar para morar na Coloninha, no Continente da Capital. O aluguel custaria R$ 650, mas eles só tinham R$ 500. O dono do imóvel aceitou receber depois e deixou o casal ficar. Compraram um botijão de gás e foram para a cozinha fazer bolos na batedeira manual que trouxeram da Venezuela e foi tão importante para os dois.
Começaram a trabalhar e não pararam mais. Bolos de festa, docinhos e salgadinhos fizeram o recomeço de José e Mayari em Santa Catarina. Em janeiro ela conseguiu emprego em uma loja de bolos no bairro Trindade, na Ilha, enquanto ele continua trabalhando de casa com encomendas.
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Foram os primeiros alunos da turma de aulas gratuitas de português da Pastoral do Migrante, na Paróquia da Prainha em Florianópolis, e já se mudaram para uma casa maior no bairro Jardim Atlântico. A batedeira manual trazida na mala da Venezuela foi aposentada depois que o locador da primeira casa deu de presente para eles uma antiga batedeira elétrica que estava parada. Nada significou mais do que aquilo para José, que segue com a batedeira até agora.
Não paramos mais de trabalhar aqui. É engraçado que na Venezuela não tem esses salgadinhos daqui, tive que aprender vendo vídeos no YouTube. Não vou vender aqui empanadas, arepas, né? Aprendi e agora amo coxinha, risóles — conta com um sorriso no rosto.
Completando um ano em Florianópolis, José e Mayari já conseguem pensar no futuro. Dizem que recuperaram em Santa Catarina as perspectivas que já tinham ficado para trás no país de origem. Em novembro vão trazer familiares que continuam no país vizinho para conhecerem o Brasil e estão ansiosos pelo Verão, quando vão poder aproveitar as praias e o calor que combinam mais com o sangue latino. Agora sem preocupações sobre a falta de comida na mesa, acolhidos pelos vizinhos e amigos que já fizeram por aqui.
— Nosso plano agora é ter o nosso próprio lugar para trabalhar, vender os bolos. Eu gosto muito de Floripa. Gosto muito da praia, gosto do Verão daqui. Às vezes eu lembro da Venezuela, mas se me perguntar se eu vou voltar, não vou. O problema lá não vai se consertar em três, quatro anos. É muito mais que isso. Aqui a gente está feliz agora.
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