Era abafada a madrugada de 4 de abril em Itajaí. Angustiado com o calor, Chocolate soltou a cadela Dengosa e saiu da garagem improvisada de lar, onde morava na Avenida Nilo Simas, Bairro Cidade Nova. Sentou-se nos bancos da pracinha em frente e arriscou uma ode ao luar. “Lua, maravilhosa lua. Lua, de gerações a gerações. Lua, que acalentou corações apaixonados, com seu brilho tão brilhante…” Raros têm a ousadia de sair de madrugada para compor uma poesia. Chocolate teve.
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Nascido Ademar Ferreira Mota, 63 anos atrás em Governador Valadares (MG), hoje é Chocolate nas ruas de Itajaí. Há nove anos, dia a dia junta livros usados que recebe de doação, empilha na caixinha de peixe na garupa da bicicleta azul e põe a venda aos leitores no Mercado Público Municipal e nas praças do Centro. O vendedor de livros e aspirante a poeta Chocolate é o protagonista de O Vendedor de Versos, o filme-reportagem produzido pelo Grupo RBS que vai ao ar hoje no site de O Sol Diário.
Chocolate é um solitário das ruas. Da solidão, extraiu inspiração. Da inspiração nas calçadas, fez brotar poesias e versos. Alguns imprecisos, verdade. Mas vai lá, quem consegue enxergar a poesia da vida em meio à sufocante rotina do dia a dia? Cora Coralina, a doceira goiana que virou poetisa, disse que poeta é quem sente a poesia, não somente quem a escreve. Na simplicidade em que vive, Chocolate prova que a sensibilidade não é privilégio dos instruídos, muito menos é essencial rascunhar palavras num caderno em branco para dominá-las. A infância difícil no interior de Minas Gerais lhe impediu de estudar.
Vendeu redes e tapetes em São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia e no Litoral catarinense. Veio num caminhão pau de arara com 15 nordestinos desde Santos, nos anos 80. Com o fim da temporada de verão, o grupo se foi. Restou Chocolate, com 12 redes a vender. Deixou para trás a companheira e os quatro filhos, que nunca mais viu. Radicado em Itajaí, vendeu artesanato, tapetes e redes. Virou manobrista do estacionamento do Mercado Público, onde um antigo cliente lhe doou livros. Chocolate tentou vendê-los e num único dia livrou-se de todos. Assim, Ademar se tornou conhecido pelas ruas de Itajaí e Navegantes. Alguns, quando o vêem, empinam o nariz, descontentes pela insistência típica dos comerciantes. Outros são atraídos pela simpatia.
– Às vezes ele é exigente. Gosta de material bonito e em bom estado. A gente doa o que consegue doar e o ajuda, porque ele vive disso. É uma boa pessoa – diz Ivana Bittencourt dos Santos, proprietária da Livraria Casa Aberta, que doa livros usados a Chocolate sempre que ele a procura.
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O analfabeto Chocolate escreve só o próprio nome e lê uns pares de sílabas. Mas a saudade é a palavra que mais anota no seu diário mental. É a principal inspiração para seus versos. Compõe músicas e pequenos poemas para lhe simular companhia na solidão. E quando Chocolate percebe que o cliente é chegado numa prosa, recita-lhe versos como forma de agradecimento pela compra.
O VENDEDOR DE VERSOS
l Estrelando: Ademar Ferreira Mota, o Chocolate
l Direção e roteiro – Cristian Weiss
l Imagens – Rafaela Martins e Marcos Porto
l Edição – Cristian Weiss e Suellen Venturini
l Coordenação – Rafael Waltrick e Fabiana Roza
l Arte – Aline Fialho
l Itajaí, abril de 2012
FILME-REPORTAGEM
O que é? Projeto do Grupo RBS que combina a linguagem do cinema com a do jornalismo. Tem como base a cinefotografia (a captura de vídeo com câmeras de foto em alta resolução). São curtas-metragens com duração média de 5 minutos que contam histórias reais de pessoas comuns do Vale do Itajaí, com tratamento visual e roteiro próprios da linguagem cinematográfica
A tristeza é saudade
A tristeza é saudade
Dos passos que não damos
Das pessoas que não conhecemos
Do lugar que não fomos
E da canção que não escutamos
A lua é tão só
Tão solitária Nela nós vivemos
Nela nós pensamos
E nela nós apreciamos
E agora ao redor
Tudo é fumaça
Que vagueia
Sentido a um beijo
Compôs sentado ao meio-fio, pensando na mãe, quando teve a mercadoria apreendida pela fiscalização em São Paulo