Lidar com a quantidade de pessoas saindo envoltas por embalagens pelos corredores dos hospitais diariamente torna o trabalho de qualquer profissional da área da saúde mais difícil. Principalmente depois de horas tentando reanimá-las. Nesta semana, Joinville ultrapassou a triste marca de mil vidas perdidas pela Covid-19, segundo dados do Estado. Um dia após a primeira morte completar um ano na cidade. É o município com maior número em Santa Catarina.
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Além de encarar da mesma forma, com as mesmas dores e mesmos cuidados que todos precisam encarar a crise sanitária assoladora ao mundo, os cansaços físico e emocional são somados. Eles estão presentes na vida daqueles que precisam tirar forças de algum lugar para atender a cada pessoa que dá entrada nas unidades de saúde. Todo o dia é desafiador, sem saber como vai ser, o que e quem vão encontrar e até que horas vão permanecer por lá. Se será um dia de lágrimas derramadas por tristeza ao perder um paciente ou por felicidade depois de uma alta hospitalar. Ou os dois ao mesmo tempo.
A especialização em emergência e catástrofes ainda não trouxe a preparação que a luta diária exige da psicóloga Amália Roque de Andrade Lopes, do Hospital Municipal São José.
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Não fomos preparados para ver tanta gente morrendo.
Ela faz parte da equipe multidisciplinar que atua na linha de frente no combate ao coronavírus. Há cinco anos lida com pacientes internados em UTI e também seus familiares. Só que no último, a demanda tem sido exacerbada, como ela mesma descreve. E parece estar ainda pior nos três primeiros meses de 2021. São muitas mortes por dia, pacientes que chegam para atendimento em um alto nível de sofrimento. As perdas estão mais frequentes nas famílias. Inclusive na dela, que perdeu um tio pela Covid-19.

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Entre a vida e a morte
Amália relatou uma das situações mais tocantes pela qual passou e que, até hoje, se emociona quando lembra. Depois que um paciente da UTI acordou da sedação, disse a ela que se sentiu, durante todo o momento, em um local de pré-morte. Como se ele estivesse no limbo entre os dois extremos, mas fosse puxado para a vida a todo instante pelos profissionais da saúde.
— Eu fico emocionada quando lembro desse relato. Ele me disse que conseguia ver todos os profissionais lutando para segurar os pacientes na terra. Tentando agarrar a vida para manter aqui. Ele [o paciente] tinha presenciado uma morte recente, tinha visto o corpo embalado. E ele disse para mim: “eu vi aquele médico chorar. Aquele que sabe muito do trabalho dele, que está me ajudando a me recuperar. Eu vi esse médico chorar. E a sensação que eu tenho é que vocês estão entre o céu e a terra, lutando para que essas vidas permaneçam” — lembra ela das palavras ditas pelo paciente.
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Mudança de vida
Não só no trabalho, a vida pessoal de todos os profissionais mudou drasticamente desde o início da pandemia. Os cuidados precisaram ser mais do que redobrados. Voltar para casa também se tornou uma ameaça, uma vez que a possibilidade de infectar algum ente querido passou a ser extremamente considerada.
O médico Igor Oliveira, que atua na profissão desde junho de 2019 e, há pouco mais de um ano, na linha de frente do combate à Covid-19 em um hospital público da cidade, precisa permanecer na unidade mais tempo do que o normal, por diversas vezes. Entre reavaliação de pacientes, ao consolo a familiares, a difícil carga horária corriqueiramente se estende. E junto com ele, o valor ao afeto também.

— Aprendi a valorizar ainda mais meus familiares. Tornaram-se dádivas das quais não abro mão. O medo de que algo aconteça com alguém próximo assombra. Sabendo do que realmente pode acontecer — considera.
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Incredulidade: o maior receio dos profissionais
A resposta para a pergunta sobre o que mais assusta os profissionais neste momento é unânime: comportamento irresponsável e negacionista de parte da sociedade. Pessoas desrespeitando medidas de segurança, realizando eventos ou mesmo não acreditando no que o vírus é capaz de fazer.
— A gente tem tão enraizado a ideia de que a equipe precisa ser a responsável pelo cuidado, que há a dificuldade de perceber que a equipe também precisa ser cuidada. E não me refiro só às questões administrativas. Eu falo de toda a sociedade. Nos impacta quando vemos a sociedade não respeitando normas. Isso é falta de cuidado com os profissionais da saúde. Estamos no limite e não queremos mais ver gente sofrendo, morrendo — destaca Amália.
Igor não imaginava vivenciar algo de tamanha magnitude em sua carreira. Ele se surpreende com a proporção que o problema tem tomado e a forma como tem tirado a vida de pessoas, das mais velhas até as mais jovens sem comorbidades.
— O que mais me assusta é ver a incredulidade das pessoas em ver a doença, mas acreditar em falácias ou métodos não provados. Aceitando-os como dogmas. Deixar de pensar no próximo, simplesmente achando que algo semelhante não aconteceria com eles ou algum familiar próximo — pontua.
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No futuro, tempos sombrios para a saúde
A perspectiva futura de cenário, para os profissionais da área da saúde, não é das melhores. Se a população não for protagonista e não entender a gravidade da situação, os fatores que promovem a disseminação da doença também serão responsáveis pelas consequências agravantes.
— Sinceramente, vejo tempos sombrios para a saúde; entrando em colapso. Daqui a meio ano, um ano, pagaremos essa dívida que virá com juros de dor, sofrimento e saudades de quem partiu — acrescenta o médico Igor.
A psicóloga Amália alerta:
— Não desacreditem da pandemia, no que realmente é capaz de fazer. Valorizem a ciência. Este é momento da ciência. É frustrante para nós, profissionais da saúde, não darmos conta de ajudar quem precisa.