Eu tenho uma alegria fácil dentro de casa: molhar meu jardim. A cada rega, as coisas pequenas, um microcosmo de vida acontecendo, me encapsulam sensorialmente no presente e eu escuto ou vejo algo novo. Um botão nascendo ou morrendo, uma mudinha que o vento trouxe de surpresa, uma cor ou inseto diferentes que seguram o instante para mim e em mim. Nesse momento, eu desligo em suspensão. Muitas vezes, confesso, me pego assobiando (embora seja péssima nisso). Levinha. É desse jeito que me nutro das plantas, na alegria mansa, calma de marola.
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Muito diferente da que tomou conta do meu filho esses dias. Quando, depois de anos de treino e tentativas, ele pendurou no pescoço suado a medalha de ouro no campeonato oficial do esporte que pratica, uma onda forte quebrou sobre o seu peito. E eu o vi desabar no chão, desfigurado em lágrimas de contentamento, absorto no grito da vitória. Uma alegria avassaladora, quando finalmente alcançamos aquilo desejado e por que se trabalhou tanto.
O que é alegria?
Marolinha ou onda de ressaca, a alegria tem a ver com o balanço na descarga cerebral de hormônios e neurotransmissores naturais ao nosso corpo, relacionados às sensações de ânimo, bem-estar, prazer e motivação, como a dopamina, a serotonina, a endorfina e a oxitocina. Mas vivenciá-la não depende só de química, e sim da nossa presença real, da percepção e desfrute íntimo do instante, e com significado, seja ele trivial como a rega de um jardinzinho ou catártico como a glória de um atleta.
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Triste é quem diz que foi feliz sem saber, porque essa é a confissão do desatento, que desdenhou e deixou a vida escapar, sem fincar memória, mesmo com todo o coquetel fisiológico bombando na cabeça. E, se há algo que não volta, é o tempo.
“Acredito que a alegria depende da liberdade de ser quem se é, da espontaneidade de se acolher no que se sente, no instante em que acontece. Isso nos faz mais dispostos e atentos aos momentos, aos pedacinhos do dia e às emoções que nos acompanham, sem ficarmos tão reféns do julgamento alheio ou do doping das férias. Depende de nos conhecermos, de saber o que nos faz alegres e cultivar isso”, diz Cláudio Thebas, palhaço, educador, palestrante e escritor.
Reconciliação com o agora
Levou mesmo um tempo para eu perceber que dar de beber ao jardim me fazia alegre, e para me deixar capturada nisso, tão à vontade a ponto de assobiar alto, para o azar de quem estiver por perto. Agora, conhecendo o bem que o verde me faz, o significado da rega mudou, ganhou mais afeto e atenção da minha parte, porque, por mais bobo que pareça, eu realmente fico melhor com e depois disso. E agradeço.
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“Quando descobrimos o que nos faz alegres, seja lá o que for, podemos instituir intencionalidade e agenda para agir, e, com o tempo, construir uma postura de valor e estima por nossas ações”, diz Andréa Perez, especialista em Psicologia Positiva, idealizadora e coordenadora da rede Felicidade Agora é Ciência.
Em uma de suas aulas na Casa do Saber, o filósofo e professor Clóvis de Barros Filho também endossa esse estado de apreciação. Ele diz que a alegria é quando o agora e o depois são melhores que o antes, isto é, quando conseguimos compor com a realidade, sem estarmos tão presos à ciranda inesgotável de querer o que não se tem. É uma reconciliação com o mundo presente, um assentamento de alma, ele diz. Sou eu, saindo melhor da rega, ou meu filho, saboreando a medalha no pescoço, satisfeito no instante, sem pensar ou desejar o torneio seguinte.
Celebre cada ponto
Aliás, a máxima do esporte, que manda celebrar cada ponto, ilustra bem a apreciação da ação presente, inclusive e talvez ainda mais quando o placar aponta que as coisas não estão lá muito bem. “Uma boa forma de a gente se sentir mais alegre é ter a intenção, a disposição de compor com a realidade, com o Sol que brilha ou com a chuva que cai, com o que dá certo e também com o que não está tão legal. Isso traz esperança e pode criar um estado de maior percepção da felicidade, até mesmo da felicidade de poder estar triste”, diz Cláudio.
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Parece fácil, mas não é. Sobretudo em uma sociedade como a nossa, que grita que, para ser pleno e feliz, é preciso ter o último smartphone do mercado ou o cargo de CEO. E que desconfia e subestima a capacidade de estar alegre e satisfeito com coisas diferentes dessas. Afinal, quem nunca ouviu a expressão pejorativa “bobo alegre”? “Olha lá o bobo alegre, contente por nada”!
Por isso, o autoconhecimento é tão importante, para que não nos tornemos meros perseguidores de cenoura, de metas, padrões, status e tendências, isolados no cabresto, sem nos darmos conta de que, no final do dia, tudo isso significou nada ou muito pouco. Talvez o bobo alegre seja mesmo mais esperto e feliz.
Plenitude no vazio
O delicioso “Samba da Bênção”, do poeta Vinícius de Moraes, canta: “é melhor ser alegre que ser triste, a alegria é a melhor coisa que existe, é assim como a luz no coração”. “Na cultura ocidental, a alegria é muito valorizada e, na maioria das vezes, por algo que a pessoa experimenta. Mas, no mundo oriental, a serenidade é considerada a emoção que traz felicidade”, observa Andréa. Essa colocação tão interessante dialoga com a cultura hindu nos ensinamentos do mestre Osho.
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Em seu livro Alegria, A Felicidade que Vem de Dentro (Cultrix), ele escreve: “A alegria é um estado de transcendência. A pessoa não está feliz nem infeliz, mas completamente serena, quieta, em absoluto equilíbrio, tão silenciosa e tão viva que o seu silêncio é uma canção”.
Na visão do indiano, a meditação é a forma por meio da qual podemos atingir o despertar da consciência observadora, desatrelada de pensamentos e emoções, capaz de trazer o verdadeiro contentamento. “Para o hindu, esse vazio não é só possível como é o estado que nos liberta das inquietações emocionais”, diz Marcelo Peri, professor credenciado de yoga na tradição espiritual indiana Navnath Sampradaya.
Marcelo explica que a prática do yoga é um instrumento para se alcançar o despertar da consciência, atravessando diferentes estágios por meio dos quais podemos experimentar o estado santosha. “Ele é a condição perene de estar completamente contente e aceitar nossos mundos interno e externo, de deixar de lado os anseios pelo que não temos, independentemente das circunstâncias, de ser grato pelo que se é. É estar diluído no vazio”, explica.
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Certamente não se trata de algo a ser conquistado e experimentado da noite para o dia, ainda mais em uma cultura como a nossa, moldada para se obter coisas, em que tudo tem função. Ao menos, para mim, o santosha é um sonho, uma benção tão distante quanto uma estrela. Mas, por ora, como não se transcende e se sobe no pódio todo dia, eu tenho meu jardim no quintal de casa. Minha alegria sincera e particular, que, assim como na música “Alegria, Alegria”, de Caetano Veloso, me faz querer “seguir vivendo”, achando o Sol “tão bonito”.
Por Vanessa Costa – revista Vida Simples
É jornalista, escritora, admiradora da natureza e boba alegre do jardim. Quando está contente, assobia, mesmo sem saber como afinar o próprio som.