O carro trepida ao passar sobre a rua formada por paralelepípedos em Presidente Getúlio, no Alto Vale do Itajaí. Uma semana depois da tragédia, quem não conhecia a principal via do bairro Revólver descobre que parte dela tem calçamento. Antes era tudo lama.
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Os pneus do carro patinavam no barro e metade do caminho precisava ser feito a pé — e de galochas. Sete dias depois o calçado de borracha ainda é útil, mas não essencial. O sentimento de desolação deu lugar à esperança. Diferente de uma semana atrás, Presidente Getúlio transpira recomeço.
Se já é possível enxergar as pedras que cobrem a Rua Getúlio Vargas é porque muitos braços trabalham exaustivamente atrás de pás e máquinas. Impossível contabilizar quantos. São os 120 soldados do Exército que vieram ajudar na missão, mas também há dezenas de voluntários que se deslocaram de outras cidades apenas para emprestar um pouco do tempo e da disposição física.
São os bombeiros, vizinhos, amigos e parentes. Pessoas que não perderam nada e, como um gesto de agradecimento ao universo, decidiram auxiliar o conhecido que não possui mais nenhuma roupa sequer. Ou melhor, não possuía.
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As toneladas de doações que chegam desde quinta-feira (17) contribuem para que os mais de 3 mil atingidos (conforme dados da prefeitura desta terça-feira, 22) possam se alimentar, vestir e começar a organizar a casa após a retirada da lama. Móveis e eletrodomésticos passaram a ser prioridades nos pedidos de doações da cidade.

Um dos três pontos de armazenamento do que chega, no bairro Pinheiro, serve também de comando aos heróis anônimos. Eles chegam, dizem o que pretendem fazer e lá são orientados para onde devem seguir. Assim nenhuma comunidade fica desassistida.
O empresário Jaime Ribeiro, por exemplo, está distribuindo marmitas com o vizinho Márcio Eleuterio desde sexta-feira (18). A esposa de Márcio, Neuzeli Eleuterio, cozinha e embala mais de 200 marmitas por dia com a ajuda de voluntários e os dois saem para a entrega. — Já almoçou? — grita Jaime aos moradores que esfregam o chão dos imóveis enlameados ou lavam os pertences com um lava a jato.
— Nós moramos em Presidente Getúlio e na nossa casa nada aconteceu. É por isso que estamos fazendo isso — explica Jaime, sorrindo, enquanto entrega uma quentinha a Loan Wiese.
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Loan está sobre um entulho acumulado às margens da rua sem saída. Ali do alto mostra, apontando com uma das mãos, onde ficava a garagem da casa dos pais dele, a cozinha e o quintal. O único indício de que havia um imóvel no local é a cerca de PVC e um arbusto, que permaneceu intacto.
Os pais escaparam porque saíram da residência minutos antes dela ser levada pela enxurrada. Conseguiram abrigo no lar do filho, que mora do outro lado, em um ponto mais elevado da Getúlio Vargas.
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Cheiro de morte
Depois da casa de Loan, a maioria das demais estruturas que não foram totalmente afetadas permanecem vazias. Roupas estendidas no varal sinalizam que os moradores saíram às pressas após a enxurrada. Nem todos voltaram pois aguardam um posicionamento da Defesa Civil, que ainda não terminou o estudo geológico.
— Há também o medo de reviver aquilo tudo, são memórias que ficam — constata uma psicóloga da prefeitura durante a caminhada que as equipes da Assistência Social têm feito para, de casa em casa, escutar os moradores.
A maioria quer ser ouvida, desde o primeiro dia. É como se ao falar repetidas vezes sobre o que viram e sentiram o inexplicável se tornasse mais real. Loan ainda acha que a “ficha não caiu”. O pai dele, Ingo Wiese, chora ao lembrar do momento em que a casa onde vivia há mais de 40 anos foi derrubada pela avalanche de lama. Uma lama que fede. Uma mistura de esgoto, lodo e morte.
Foi o odor, inclusive, que auxiliou as buscas dos bombeiros. Todos os 18 corpos dos desaparecidos foram encontrados entre quinta e terça-feira. O forte cheiro atrelado à quantidade mais elevada de insetos em determinados pontos facilitou a procura.
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Depois de seis dias de trabalho intenso, com cerca de 40 socorristas em campo das 7h às 19h, os caminhões dos bombeiros, antes por toda a parte, deram lugar aos caminhões-pipa, de móveis, alimentos e água, às caçambas e máquinas que retiram toda a vegetação, pedras, escombros e lama.
Além dos carros, caminhonetes e jeeps que circulam com voluntários e doações. Uma semana depois, um levantamento de todo o prejuízo ainda não foi finalizado, mas até o momento a prefeitura estima mais de 50 ruas danificadas, incluindo galerias, pontes e asfaltos.
Para consertar acessos e tubulações, Presidente Getúlio receberá do governo federal R$ 14,2 milhões. Novas liberações são aguardadas para contribuir com os mais de 3.200 afetados pelas chuvas.
Diferente das primeiras noites, ninguém precisa do abrigo improvisado em uma escola, porém mais de 620 famílias estão em lares temporários. Outras 700 não deixaram os imóveis, mas tiveram perdas de tudo ou quase tudo o que havia dentro deles.
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Os animais passaram a receber assistência no fim de semana. Equipes do GRAD (Grupo de Resgate de Animais em Desastres), Cidasc e veterinários de Santa Catarina levam ração aos que permaneceram nos terrenos, abrigam os abandonados e prestam assistência aos que precisam. No salão da igreja luterana do Centro, uma clínica foi improvisada. A cancha de bocha virou canil. O gramado, lar temporário para o bezerro solitário. Até esta terça (22) mais de 60 passaram por lá.

Aos poucos a situação vai normalizando na cidade de menos de 20 mil habitantes. Para o prefeito Nelson Virtuoso (MDB) um ano será preciso para que tudo pareça como antes. Exceto pelas casas condenadas ou que desapareceram. E pelas vidas que não voltam mais. De todos os estragos da tragédia, esse, sem dúvida, é o mais doloroso para a pequena Presidente Getúlio.