Por Andrey Lehnemann *
Um dos maiores problemas do cinema norte-americano moderno é a forma como encarar períodos nefastos da história humana. Como retratar um período em que homens eram separados pela cor da pele para servir a outros com um mínimo de distanciamento ou sem uma trama que soe até falsa por tamanha devoção aos seus protagonistas? Lincoln, de Spielberg, por exemplo, sofria com a veneração ao homem, quase o tratando como um mito, por nunca ter abdicado de um fundamento aparentemente simples, mas que muitos se esquecem: todos os seres humanos são iguais.
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Na própria relação norte-americana com o período, aliás, é curioso como temos um homem branco, de alguma forma, sempre tratado como o benfeitor. E não pelo fato de não existir abolicionistas “aceitáveis socialmente” (e só de usar essa expressão já denota o contexto perturbador que falamos), pois havia, mas como se alguma consciência subitamente atacasse todos aqueles que usavam os trabalhos de outras pessoas como se elas fossem animais fiéis aos seus caprichos. Histórias Cruzadas exibe um grande problema por esse motivo: como se não bastasse o título cínico (The Help, A Ajuda, na tradução literal), a “revolução” começava por uma jornalista branca que dava apoio às empregadas que _ vejam só! _ necessitavam de socorro. Caso pegássemos uma situação ainda pior, O Nascimento de uma Nação, de Griffith, sugeria que os membros da Ku Klux Klan eram heróis da América.
Claro que, embora nenhuma das obras seja propriamente sobre o período escravocrata, a abordagem já denunciava as dificuldades impostas pelo cinema: os tons maniqueístas, gracejos constrangedores, manipulação emotiva, entre outros. Aliás, não é estranho compreender a visão sentimental que os diretores americanos se auto interpõem a filmar tramas de “diferenças” raciais, pois há um sentimento de culpa. Se … E o Vento Levou (leia nas páginas 2 e 3 deste caderno) demonstra uma visão concentrada no sul dos Estados Unidos, Manderlay segue o mesmo caminho, mas com um diretor dinamarquês que se força apenas a mostrar a crueza e nocividade do drama. Afinal, a vida humana não precisa de grandes artifícios para soar ainda mais frágil e extraordinária.
É exatamente essa ótica que também soma à câmera do inglês Steve McQueen em 12 Anos de Escravidão: a natureza complexa e sociopata dos seres humanos daquele período. Solomon, o personagem de Chiwetel Ejiofor, não precisa de pena, mas de justiça. Ao menos, a mensagem é essa e é doloroso assistir ao espancamento que produz a sua frustração e a sua raiva ou o choro e a vergonha após o orgasmo, que apontam para as condições do prazer.
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As cicatrizes são escancaradas nas cenas dos banhos, o plano frontal que abre o longa é autoexplicativo e a venda dos escravos estão em seu ápice dramático: com nudez e separação familiar em grandes palácios. Não há tempo para sutilezas ou lamentos na obra, mas a sociedade e seus preconceitos são expostos sem pudores: a Bíblia servindo como instrumento de tortura por senhores de escravos em determinado instante é um belo exemplo. Até mesmo uma cena comum entre Django e a história de Solomon _ o açoite de um capataz _ ganha muito mais peso dramático no filme do diretor inglês. Edwin Epps, interpretado por Fassbender, tampouco é um sujeito vilanesco, mas alguém que cultiva um ódio por sua própria natureza por ter “permitido” se apaixonar por uma negra _ o modelo do aristocrata que chamava as moças de inferiores e as levava para a cama logo depois.
Quando este dá chibatadas durante um longo plano-sequência de oito minutos todas as suas emoções ficam expostas. Até mesmo o personagem marcante de Benedict Cumberbacht oferece a dualidade do gentil moço com alguém que usa escravos para suas construções. Não é uma história fácil de ser contada, mas é difícil imaginar alguém melhor que McQueen para isso.
* É jornalista e crítico de cinema