Os quatro casos de feminicídio registrados esta semana no Estado despertam uma preocupação ainda maior com o problema da violência contra a mulher. A desembargadora Salete Silva Sommariva é presidente da Coordenadoria da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar (Cevid) do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJ-SC) e trabalha com projetos que buscam reeducar homens e evitar que casos como esses se repitam na sociedade.

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Entre essas ações, uma novidade é a implantação do projeto “Salve Maria”, um aplicativo de celular que terá duas funções. Uma para criar um novo canal de denúncias de casos de violência doméstica que envolvam outras pessoas. A outra funcionalidade é um botão que a mulher vítima de ameaça ou violência pode acionar quando estiver perto de uma situação de perigo. O aplicativo envia a mensagem para a viatura mais próxima da Polícia Militar, que poderia chegar ao local da ocorrência entre dois e cinco minutos. A iniciativa já foi adotada no Piauí, onde membros do TJ-SC estiveram recentemente para buscar informações da ferramenta.

Ainda assim, a desembargadora não esconde a frustração com os casos recentes desta semana e credita o aumento dos casos de feminicídio a uma parcela dos homens que permanecem ligados à cultura da mulher como propriedade. Como possíveis medidas para reverter esse problema, ela defende o aumento de penas para casos de ameaças e lesões corporais contra mulheres, que poderiam evitar que novos feminicídios ocorram. Confira a entrevista:

O que explica essa alta nos casos de feminicídio e violência à mulher?

Esse número crescente tem surpreendido até a nós que trabalhamos todos os dias com essa questão. Há algo muito importante acontecendo. De um lado, temos a sociedade toda mobilizada no sentido de minimizar essa situação do feminicídio. De outro lado, vemos que os crimes estão acontecendo, estão sendo cometidos das formas mais cruéis possíveis. Então fica indagação. Será que os casos estão tendo mais visibilidade ou os homens estão recrudescendo, diante dos programas que estão sendo realizados? De repente, tem-se essa impressão que não eles estão aceitando essa situação.

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Na verdade, uma parcela dos homens não acompanhou a evolução da sociedade. Eles interpretam as coisas de forma diferente. A mulher não quer tirar o espaço do homem, ela quer caminhar junto, quer que direitos sejam preservados. O direito de viver, andar, trabalhar, de acordo com suas vocações.

Mas uma parcela dos homens não entende isso. Ela traz a cultura da era do homo sapiens, em que a mulher era uma propriedade. No momento que a mulher toma decisão de separação ou algo parecido, vem aquela revolta: “ou mato, ou morro – e muitos até se suicidam mesmo –, mas quero que ela continue dentro de casa, sendo minha mulher”.

Temos hoje inúmeros projetos. Mas já cheguei à conclusão de que não vamos conseguir voltar para trás, retroagir. Homens com uma determinada cultura, esse DNA de propriedade, de violência, posse, dificilmente vamos conseguir mudar.

Nosso trabalho vai refletir daqui a quatro, cinco anos. Não só o trabalho do TJ-SC, mas de todas as entidades, instituições, todos estão preocupados. Temos umas 30 instituições trabalhando nesse sentido. Não vemos frutos agora. Até nos desanima, nos deixa em situação de vulnerabilidade e impotência, porque apesar de todos os esforços, o crime continua, e cada vez de forma mais violenta, truculenta. A impressão que se tem é que se voltou à era medieval porque os meios usados são os mais cruéis possíveis. A cada crime que aparece ficamos mais sensibilizados.

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Como enfrentar e reverter essa triste realidade?

Eu diria que não é questão de impunidade. Os casos de Maria da Penha caminham muito rápido e as penas são rigorosas, começam com 12 anos e aumentam bastante dependendo das circunstancias do crime. Tem causas de feminicídio que chegam a penas de 18, 20 anos. As medidas são pesadas, estão sendo cumpridas, o Judiciário tem estado alerta.

O que talvez tenhamos é que mudar a Legislação. Para o crime de ameaça, a pena é de um a três meses. O que acontece? O homem ameaça uma, duas, três vezes, vai pegar pena de no máximo três meses. Quando exerce essa ameaça ele já está num ato preparatório, ele vai cometer esse homicídio.

Uma ideia bem inicial que tenho é que a legislação teria que mudar para aumentar a pena para ameaça contra a mulher. Assim como as lesões corporais, que têm pena muito pequena. Isso não amedronta o autor da ofensa. Se aumentasse a pena nesses dois crimes, fosse mais rigoroso com ameaça e lesão corporal contra mulher em situação de violência doméstica, talvez houvesse esperança mais próxima de nós.

Como trabalhar de forma preventiva e buscar essa mudança?

Temos que ter dois focos. Um com a criança, na educação, e temos projetos maravilhosos como o Formar para Transformar. Capacitamos cerca de 500 profissionais da área da educação para detectar quando os pais dos alunos estão em situação de violência doméstica. Além disso, temos a implantação do "Salve Maria", que pode ser mais um importante aliado.

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Temos que partir da infância para que a criança não venha replicar o comportamento. Temos que cortar o mal pela raiz. O agressor tem que ser tratado. Queremos proteger as mulheres e reeducar os homens. Enquanto esses homens não forem tratados, esse tipo de atitude que está ocorrendo em SC vai continuar acontecendo.

Há um perfil desses crimes ou a violência hoje está presente em diferentes idades e classes sociais?

Está muito longe aquele tempo que pensávamos que isso ocorria mais em comunidades mais carentes. A violência está em todas as camadas, desde a menos favorecida, com menos cultura, até as mais altas da sociedade. Parece-me que na classe média isso está mais latente. E ocorre em todas as idades. Vemos mulheres de 55 anos morrendo, sendo agredidas, mas algo me chama a atenção: é que via de regra elas estão numa faixa de idade de 30 a 40 anos. Isso leva a crer que os agressores também tenham mais ou menos essa idade.

Há um comportamento padrão dos homens dessa faixa etária que explicam esses casos?

Acho que os primeiros anos de casamento, de união, transcorrem em clima de paz. Vai chegando uma época que relação vai se desgastando. O desemprego ou a falta de estabilidade econômica às vezes vão desgastando a relação. A gente acaba achando que eles têm um grande problema. Quando chega nessa fase do desgaste, começam aquelas discussões intermináveis e chega a um momento que a mulher diz: não quero mais. É incomum o homem pedir a separação, ele nunca quer, para ele é mais confortável. Quando as mulheres tomam essa iniciativa, vem esse revanchismo, essa vingança por parte dos homens. Se não fossem todas essas políticas públicas e projetos, a situação seria pior. Penso que um grande número a gente enquanto sociedade tenha conseguido evitar.

Que dificuldades existem hoje nos projetos?

Começamos a observar que a questão da mulher teve seu espaço maior com a Lei Maria da Penha, que entrou em vigência em 2006. Temos 12 anos, um espaço muito curto para se mudar a cultura. Nesses 12 anos, realmente todos os esforços têm sido feitos, e foram reduzidos os casos, mas não a ponto de realmente estancar. O trabalho que está sendo feito hoje vai ter reflexo daqui a alguns anos. Não vamos conseguir voltar no tempo e mudar essa mentalidade. É muito difícil conseguir um grupo de homens (para trabalho de reeducação), dentre esses talvez haja poucos que tenham essa tendência, essa truculência. É difícil educar os homens que vão cometer o feminicídio.

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Como vai ser essa transformação, esses efeitos esperados?

Essa mudança vai se repetir primeiro numa conscientização. Costumo dizer nas palestras que faço que hoje temos dois focos no Brasil. De um lado, temos uma sociedade angustiada, nervosa, sensibilizada. O crime de São José sensibilizou muito a Grande Florianópolis. A sociedade está se sentindo impotente, os poderes também, por não estarem conseguindo reverter essa questão.

Mas a sociedade que estava dormitando hoje levantou do sofá e se está engajando nessa questão. Os próprios homens. Vai ser uma mudança de cultura. Como tem que começar pela infância, a mudança vai ser em médio prazo, vai ser paulatino, com a geração que está se formando agora, com 10, 12, 15 anos. Lamentavelmente, essa conclusão se torna clara. Nossos movimentos, embora sejam muitos, não vamos conseguir andar para trás, retroagir.

O que motiva comportamentos tão agressivos dos homens?

Na verdade, uma parcela dos homens não conseguiu ainda aceitar a evolução da mulher. Ele pensa que é provedor do lar, ele manda, determina, controla a mulher. Hoje, com a evolução da mulher, a conquista do mercado de trabalho, acredito que eles pensam: “mas onde vou me situar? Estou perdendo espaço para minha mulher. Hoje ela trabalha, pode prover o lar, e a hora que quiser sair de casa, sai e vai sobreviver. Onde vai ficar meu poder? Vou exercê-lo”. Talvez seja um dos motivos. O fato de não encarar realidade como ela é. A mulher quer apenas seus direitos assegurados, não quer concorrer e ser mais, não quer estar em situação de maior poder. Na vida, no trabalho, na educação. Ela quer usar todas as suas vocações que traz dentro dela, conquistar o seu espaço, o seu lugar.

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