Injustiça, perseverança, sofrimento, saudade e comoção pelo tempo que se perdeu. Em uma palavra, angústia, muita angústia.
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Todos esses sentimentos juntos talvez definam – mas não cheguem a traduzir – as diversas etapas da dramática história de Macarena Gelman, filha de vítimas do regime militar argentino que teve a vida revirada aos 23 anos, quando soube sua origem.
Até o ano 2000, Macarena era uma uruguaia que vivia tranquilamente com os pais em Montevidéu. Nesse ano, a exaustiva investigação de Juan Gelman, um dos mais importantes poetas argentinos e seu avô biológico, resultou no choque de se saber outra pessoa. Tomou conhecimento de que os pais haviam sido sequestrados em Buenos Aires, em 1976, a mãe levada ao Uruguai e ambos assassinados.
O corpo do pai, Marcelo, filho de Gelman, foi encontrado e identificado. O da mãe, María Claudia, está desaparecido. Macarena era, sem saber, uma argentina que nasceu, por um triste acaso, no Uruguai. Após um mês e 22 dias de convivência com a mãe em Montevidéu, a menina foi colocada na porta da casa de um policial uruguaio – que se tornou seu pai adotivo.
Esse enredo, que Macarena relata com pausas, voz baixa e eventuais crispações do rosto, foi tema de palestra que ela fez ontem no seminário Operação Condor: Testemunhos e Espaços de Memória, na Assembleia Legislativa.
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Pouco antes, ela defendeu, para ZH, investigações tão persistentes quanto a do seu avô. Mais: apesar de a passagem do tempo encobrir pegadas, mostrou-se favorável a comissões da verdade mesmo que tardias como a brasileira.
– É importante persistir na busca da verdade e da justiça. A passagem do tempo é ruim para esse tipo de investigação, mas veja que estamos aqui falando sobre esse assunto. É sinal de que ele não está resolvido.
Verdade e justiça, mesmo significado
Macarena se utiliza de dois substantivos que vê como sinônimos para defender investigações exaustivas: “verdade” e “justiça”.
– Precisamos saber de onde viemos para entender aonde vamos – alega.
Há um esforço de Macarena para preservar o carinho da vida com os pais adotivos e jogar luzes sobre a face desconhecida de sua vida. Empenha-se em localizar o corpo da mãe biológica e mantém o afeto com a mãe adotiva.
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– Ela me diz que não sabia da minha origem. Acredito no que diz – emociona-se, silenciando por segundos.
Com os três avós biológicos vivos, o contato é esporádico. Juan Gelman vive no México. O avô materno, em Barcelona. A avó materna, sim, em Buenos Aires, a um rio de distância.
– Quando eu soube de tudo, minha maior necessidade era de saber, de conhecer mais detalhes dos meus pais. De ver fotos, de reconhecer minha família. O pior de tudo é a incerteza, é terrível. Saber é fundamental.
O mais tenso momento emocional de Macarena é o atual, 12 anos depois da virada em sua vida. Por quê? Porque, como diz o clichê, a poeira baixa, o pó se assenta e a vida segue o rumo. O problema é este: o rumo.
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– Privar uma criança da sua família, dos pais, é tremendamente desumano. Não sei como seria a relação com meus avós se tivéssemos convivido quando eu era pequena. Mas tenho a sensação da perda desse vínculo. O fato de não tê-los quando crescia… Conhecer a verdade foi importante. Mas sigo a vida com o sentimento de algo incompleto.
Carta ao neto
Confira trecho de texto feito pelo poeta Juan Gelman em 1995 para o neto que não conhecia e que buscava – era Macarena. A própria Macarena contou a ZH que desconhecia a carta até ter a vida real identificada, em 2000:
“Não sei se és homem ou mulher. Sei que nasceste… Agora, tens quase a idade dos teus pais quando os mataram e logo serás mais velho que eles eram. Eles ficaram aos 20 anos, para sempre. Sonhavam muito contigo e com um mundo mais habitável para ti. Eu gostaria de te falar sobre eles e que tu me fales de ti. Para reconhecer em ti o meu filho e para que reconheças em mim o que do teu pai eu tenho.”
A luta de Gelman
Poeta não descansou até encontrar a sua neta:
Em 26 de agosto de 1976, o poeta Juan Gelman teve sequestrados os filhos Nora, 19 anos, e Marcelo, 20, com sua nora, María Claudia Iruretagoyena, 19, que estava grávida de sete meses. Seu filho e sua nora desapareceram, com a neta nascida em cativeiro.
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Em 1978, Gelman soube que María Claudia havia dado à luz. Não tinha informações ainda quanto ao sexo da criança. Na Carta ao Neto (ao lado), ele escreve sem saber que era uma menina a filha de Marcelo.
Em 7 de janeiro de 1990, antropólogos argentinos identificaram os restos de Marcelo Gelman, morto com um tiro na nuca.
Em 1998, Juan Gelman soube que María Claudia havia sido levada ao Uruguai, onde dera à luz. Era a Operação Condor, intercâmbio entre ditaduras sul-americanas nos anos 70 e 80.
Em 2000, a neta de Gelman, de nome Andrea, é localizada. Gelman a encontrou, em um momento de forte emoção. E ela decidiu assumir o nome que teria caso não tivesse sido tomada de seus pais: María Macarena Gelman García.
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Juan Gelman e Macarena Gelman ainda tentam localizar os restos de María Claudia.