A vergonha a acompanhou por muitos anos, assim como o medo e a insegurança pela falta de recursos. Em silêncio, já acreditando que a culpa pelos roxos que marcavam seu rosto eram sua culpa, Jandira Mara dos Santos, 46 anos, escondeu o sofrimento por trás de uma máscara criada para suportar as agressões:

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Acordava cedo, me maquiava para trabalhar e saía com um sorriso no rosto. Por dentro, a realidade era outra. O sorriso escondia a grande dor que eu tinha na alma Jandira Mara dos Santos

Vítima de violência doméstica por cerca de 17 anos, tempo que durou o segundo casamento, a auxiliar de logística procurou a polícia diversas vezes. Na primeira tentativa, em 2006, chegou a ouvir de um delegado – do qual não recorda o nome – que o problema deveria ser resolvido em casa, entre marido e mulher.

A orientação caiu para Jandira como um balde de água fria.

— Ele viu que a polícia não estava do meu lado e cresceu. As agressões ficaram mais frequentes — conta.

Muitas vezes pensou em tirar a própria vida, como meio de romper o ciclo de violência. Ela terminava o relacionamento, mas o agressor não recuava. No trabalho, recebia flores:

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— As pessoas diziam que ele gostava de mim e que ele era um marido invejável. Me aconselhavam a voltar e a não brigar mais com ele. Era assim que as pessoas reagiam quando viam os presentes que eles me mandava — relata.

Depois dos mimos, Jandira era procurada pessoalmente. Eram tentativas de reconciliação, mas com exigências e ameaças. Em uma das ocasiões, a mais grave, ela foi colocada para dentro do carro contra vontade e levada para um local ermo, em Biguaçu.

Ainda dentro do veículo, sentiu o peso da mão do cônjuge mais uma vez.

— Na frente dos amigos dele, olhava para outras mulheres e me desprezava. Nos dias em que eu recebia o salário, chegava me esperar na porta do trabalho pra ter certeza que eu daria o dinheiro para ele — lembra.

Sem recursos para passar em uma loja e comprar algo para si, foi esquecendo a vaidade. Não percebeu que suas roupas íntimas e vestes que usava eventualmente, em ocasiões especiais, não estavam mais no armário. Ela “não precisava dessas peças”, conforme dizia o marido, hoje mencionado por ela somente como o “agressor”.

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“Ele roubou o meu sorriso”

Conhecida por sua alegria, Jandira abria um sorriso largo facilmente. Era a sua marca registrada, como define. Mas esse mesmo sorriso, também era o que mais incomodava o ex-companheiro.

— Ele roubou meu sorriso. Terminou com minha autoestima. Enquanto me agredia, repetia que eu não teria mais os dentes, que eu tanto gostava — se emociona.

Os vizinhos ouviam seus gritos e conheciam a rotina de agressões, mas procuravam não se envolver, já que “nem a polícia, nem a família” a ajudavam. Ela aceitava, por medo do que poderia acontecer com os filhos, que moravam com a avó, mas eram tema recorrente das ameaças.

— Fiquei trancada um ano inteiro dentro de casa porque eu não me sentia bonita. Engordei, não me cuidava. Eu tinha virado um monstro. E era isso que o deixava satisfeito — relata.

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Um ponto final

— Ele chegou em casa e eu estava sentada no sofá da sala. Quando entrou, alterado, tive certeza que iria me matar — relembra.

Foi nesse momento que Jandira entendeu que a vida dela acabaria, se não recuperasse o controle da própria vida. Era junho de 2017. Ela fugiu pela janela e foi até uma delegacia com o único recurso que tinha em mãos: um vale transporte. Já passava das 19h e o prédio estava fechado. Retornou para o bairro, mas se escondeu em uma vizinha, onde ligou para um advogado.

Orientada por ele a não sair do local, o advogado se dirigiu até o endereço de Jandira, que era uma pessoa desconhecida, até então, e a abrigou na própria casa, até que sua segurança estivesse garantida. Foram quatro dias escondida na casa dele. No primeiro amanhecer, procurou a delegacia.

— Não posso dizer que fui mal atendida, mas também não tive a compreensão que precisava ter, só que já estava decidida do que queria, então fui em frente — relembra.

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Não foi uma única denúncia que afastou o agressor. Reiteradas queixas foram se acumulando, assim como suas reclamações dela sobre o atendimento:

O que todo mundo precisa entender é que uma mulher agredida, violentada ou morta, não é uma estatística, nem um pedaço de papel. Uma mulher é um ser humano Jandira Mara dos Santos

Depois de alguns meses, uma ligação da delegacia a surpreendeu: era um convite para participar do projeto “Espelho Meu”, criado pela Polícia Civil. Como outras nove mulheres, Jandira foi fotografada. Se ver com outros olhos, através das imagens produzidas, melhorou sua autoestima.

Jandira ganhou ursos de pelúcia dos filhos, quando conseguiu se libertar do ciclo de violência
Jandira ganhou ursos de pelúcia dos filhos, quando conseguiu se libertar do ciclo de violência (Foto: Tiago Ghizoni/DC)

A partir daquele momento, voltou a se cuidar, a aceitar elogios e a sorrir sem medo. Mais do que isso, passou a incentivar outras mulheres violentadas no ambiente doméstico e participa, ativamente, dos projetos institucionais de apoio às vítimas.

Considera que a Polícia Civil melhorou significativamente o atendimento nos últimos dois anos e recomenda a quem precisa, a buscar o apoio oferecido através das Dpcamis. Também não deixa de agradecer o incentivo que recebeu, através do projeto:

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— Abri um canal no YouTube (Abusadamente Mulher) e comecei a contar a minha história. Quero encorajar outras mulheres que ainda sofrem com a violência. E agora eu não me calo mais — conclui.

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