Calma, controle a ansiedade, logo você vai chegar à visão da Cordilheira del Paine e seu parque que ostenta a fama de mais vistoso e sedutor da América do Sul. Calma. Antes de venerar esse santuário de montanhas e suas três torres de mais de quase 3 mil metros em paredões de granito cobertas por um gorro branco de geleira, é preciso curtir deliciosas preliminares a caminho do extremo sul do Chile.
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O deslocamento até a vizinhança do fim do mundo faz parte do charme. Mas não se engane. Paine é uma cordilheira única, com identidade própria. Nada a ver com o gigantismo da Cordilheira dos Andes. As duas convivem bem próximas, a 20 quilômetros de distância no extremo da ponta onde o continente se afunila até a Terra do Fogo. A fascinação maior na região não vem dos Andes. Vem do Paine, das torres de perfil ondulado e dos maciços que se erguem ao lado dentro do parque nacional. É hoje o mais desafiador destino de trekking da América em circuitos entre montanhas e lagos com o degelo dos picos.
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Os caminhos até lá não são muitos. Depois de Santiago do Chile, ou se toma a Rota Pan-americana Sul ou se voa quase quatro horas até Punta Arenas, cidade portuária de 150 mil habitantes, de tempo turvo, temperaturas baixas e ventos mais ou menos rigorosos.
Punta Arenas oferece mais. Carnudas centolhas (caranguejos gigantes), por exemplo, o pisco sour com cara de caipirinha e o berçário de pinguins na Baía de Otway. Há quem lembre apenas das genuínas cervejas Calafates.
Você está na região magalhânica, que se espalha pelo Chile e pela Argentina. Punta Arenas é antigo porto do Estreito de Magalhães, com águas do Atlântico. Navios de grande calado que evitam o Canal do Panamá se esgueiram até o estreito que une Atlântico e Pacífico numa boa, sem os conflitos de oceanos que ocorrem no Cabo Horn, na última quebrada do continente.
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Emproados, os nativos se dizem magalhânicos — e isso vale para os vizinhos chilenos e argentinos desse canto do mundo, ao sul da Patagônia.

De Punta Arenas são mais quatro horas até o Parque Torres del Paine. Há linha de ônibus até perto, na cidade de Puerto Natales. A estrada é convidativa, apesar do nome Rota do Fim do Mundo, meio eloquente e meio irônico, porque se trata disso mesmo: longas retas levam ao ponto máximo que uma estrada pode se aventurar ao sul do continente.
Os hotéis se encarregam do traslado do hóspede. A rotina nos 10 hotéis em torno dos 2,4 mil quilômetros quadrados do parque. Os turistas na maioria são europeus e americanos, embora os brasileiros, com a crise, aparentemente tenham trocado destinos mais dispendiosos pela Patagônia.
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La Ruta del Fin del Mundo é duplicada, piso de cimento, bem sinalizada e, acreditem, sem pedágio. Ela rasga de norte a sul o estreito braço afunilado ao sul do território chileno. Corta um pampa quase tão pampa quanto as terras da fronteira gaúcha.
A caminho, você pode se sentir em casa, com frio, vento, planícies, fazendas, pastagens, gado angus e hereford, ovinos, cavalos crioulos e cerros. Sim, você está no pampa da Patagônia. Em duas horas você chega a Puerto Natales, pequena cidade de 30 mil habitantes, em meio aos recortes de rios, lagos e fiordes que se desenham agora na costa leste do Chile, agora em águas do Pacífico. Deve ganhar aeroporto de voos regulares ainda este ano. Há expectativa se os voos serão diários. Por enquanto, é necessário pegar a estrada do Fim do Mundo. São mais 150 quilômetros até o Paine.
A rádio da van roda música altiplana, e chamam a atenção os rolos de fenos embrulhados em plástico metálico empilhados para uso no inverno. A partir de julho, os campos quase empedram de gelo. O motorista da van faz uma observação.
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— A estrada é o refeitório das águias — diz o magalhânico Rodrigo Doble, ao avistar duas águias sobrevoando o que restou de uma lebre atropelada na pista.
As trilhas e o vento
O refeitório obedece a uma ordem de chegada. Se estiver por perto, o primeiro a bicar a carniça é o imponente condor, habitante nativo da região. Uma vez satisfeito, deixa a sobra para as águias se fartarem. A mora é a maior, de corpo branco, patas amarelas e asas azuis.
Você verá que a sequência dos comensais é a mesma sobre as presas do puma. Na Patagônia, imperam o condor no alto, e o puma na terra.
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Quatro horas depois de Punta Arenas, passado Puerto Natales e rodado um tanto de estrada e meia hora de chão batido, avista-se o mistério das montanhas. As torres se revelam com o pico tomado por um gorro branco de neve. É fascinante demais.

Mas pouco se vê do hotel, o Tierra Patagônia, um prédio de madeira erguido camufladamente em direção ao Lago Sarmiento, nos limites do Parque del Paine. Vislumbra-se a cordilheira de qualquer ponto desta arte arquitetônica, do hall ao restaurante, das 40 habitações ao terraço. As torres parecem estar a duas quadras. A filosofia da casa é por intervenção mínima. Lebres, hemas, guanacos, coelhos e raposas se aproximam e se veem pelos janelões espelhados ao longo do hotel. Não percebem as pessoas do lado de dentro.
Experiências para aventureiros (e para mortais sedentários)
Há várias incursões pelo parque, do tipo turistão às mais desafiadoras, com escaladas profissionais. Em todas, caminhadas, trekking ou cavalgadas, vigora o princípio de sustentabilidade. É claro, sempre com a presença do guia. Fora as caminhadas perto do hotel, trilhas que levam à base das torres e a redutos dos falcões e dos pumas ou conduzem aos maciços dos cornos da cordilheira, todas exigem a presença de um tutor, que conhece terreno, fauna, vegetação e discorre sobre formação do solo. Há opções no parque aos mortais sedentários. De incursões a bosques, montanhas, cascatas e no entorno de margens de lagos, glaciares e rios. Nada a ver com os circuitos W e O destinados a profissionais e a aventureiros mais ou menos sarados.
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Seja para onde for, é necessário conviver de forma amigável com o senhor vento. Mais do que o minuano gaúcho, o vento magalhânico vive de rajadas surpreendentes, de 80 km/h para cima, não importa a hora e o tempo.
— O vento é o personagem da Patagônia — diz o guia Patrick Hudson, do Tierra Patagônia.

Quanto mais perto do paredão das torres, mais se entende a frase do guia. Portanto, são imprescindíveis jaquetas à prova d’água e de vento, sapatos de trekking ou botas de excursão, roupas e luvas impermeáveis, protetores solar e labial e gorro. Cinco minutos à frente do Paine são desafiadores. Lufadas sopradas das montanhas carregam borrascas de gelo dos picos e entram pelas costuras da roupa.
É como se o vento empurrasse o visitante dali. Assusta de início. Logo você aprende a lidar e se convence de que é suficiente permanecer ali o bastante para meia dúzia de fotos e uma reverência à montanha.
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A outra imensidão local são os glaciares. O maior deles, o Grey, que convive com tempestades diárias, nem sempre permite a aproximação de turistas.
Para recarregar energias, o aconselhável é submergir na água quente da jacuzzi do hotel. Ao ar livre. Com a cordilheira à frente e a sensação térmica fora da água menos qualquer coisa abaixo de zero.
A cavalgada e o cordeiro
Você é levado a uma fazenda a meia hora de van longe do hotel e monta em um cavalo crioulo, porque, afinal, estamos no pampa, mesmo na região da cordilheira del Paine, perto de geleiras, lagos e de vegetação árida. O grupo cavalga por meia hora por um bosque, sem muita pressa. Os cavalos, que já sabem o caminho, são os mais apressados, e os guias os controlam. O destino é uma fazenda de onde se tem a impressão de estar a uma quadra da imensidão do Paine. Falsa impressão. O dono da propriedade já aguarda os visitantes. O cordeiro corriedale inteiro está esticado em um dois espetos em cruz diante do fogo de chão. Diante dele, a grelha é baixa e sustenta o chouriço, a chaleira e o panelão de batata.
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O cordeiro é criação da casa. As fazendas da região têm média de 15 mil hectares, embora grande parte em montanhas e bosques intocáveis. Além do gado e dos cavalos crioulos, cria-se ovinos aptos para carne e lã.
O problema é à noite. Com alguma frequência, o puma ataca o rebanho. Aparecem com os filhotes e trucidam de 20 a 30 ovelhas. Não comem a carne. Querem apenas ensinar os filhos como abater a presa. Em reação, os fazendeiros atiram nos predadores, que chegaram perto da extinção. Pela lei chilena, o proprietário tem razão.
O puma e o guanaco
Um movimento de ambientalistas conseguiu reverter o processo de extinção do puma. Hoje, é incerto o número destes felinos no parque. Uns falam em 80, outros estimam em 600.
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O puma não quer conversa com você. Como dispõe de farta carne fresca dos guanacos, não vai se incomodar em saborear humanos, essa raça esquisita que deve ter gosto salgado demais. Em todo o caso, vai um aviso: se aparecer um legítimo puma, não saia correndo, como fariam suas presas corriqueiras. Procure ficar quieto, controle os nervos e, sem movimentos bruscos, erga lentamente os braços tentando parecer maior e faça cara feia rangendo os dentes como se fosse um urso colérico. Os magalhânicos ensinam assim. O puma vai achá-lo um tanto maluco e ridículo e sairá a passos.

Não há notícias de ataques nesta região da Patagônia. Dificilmente você verá um deles. Camuflado com a pelagem da vegetação bege, ele terá visto você 10 vezes antes. De qualquer forma, o bichano não transita pelos mesmos locais em que os indigestos humanos costumam passar nos bosques ou no terreno aberto das estepes. Até porque cada vez menos pumas circulam no parque del Paine.
— Já tive a sorte de passar por pumas no parque ao anoitecer. Buzinei, e eles nem se moveram. Se não são intimidados, nem se mexem — conta Fernando Calisto, motorista do Tierra Patagônia.
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Os horários de felinos e humanos também não fecham. Até as 10h, o puma caça e se alimenta. Come entre 40% e 45% da parição anual de guanacos, parente das lhamas. Uma fêmea e dois filhos se esbaldam com um guanaco abatido por dois ou três dias. Depois de se fartar, enterra a carniça, é quase uma solenidade. Esconde bem, cobre com vegetação, apaga os vestígios do seu prato de comida do dia seguinte e se mantém por perto. Há muitas criaturas de olho. Se a raposa descobre o esconderijo, será preciso voltar à caça. E o puma da região não é muito chegado ao esforço.
Em todo o caso, antes do anoitecer ele acorda e sai a infernizar a vida do pobre guanaco.
Magalhães e o tesouro
Não há estrada que percorra o Chile inteiro até a ponta sul em Punta Arenas. É preciso entrar na Argentina e retornar ao Chile. Também por isso, os nativos da região do estreito de Magalhães convivem sem as rusgas que os nortistas historicamente mantêm por birra. O chilenos buscam gasolina e eletrodomésticos no vizinho, e os argentinos invadem a zona franca de Punta Arenas. Há parentescos dos dois lados, e a bandeira azul e amarela de Magalhães se ergue junto à azul e vermelha do país. É mais fácil o nariz torcido entre o morador de Punta Arenas, os ditos mapuchos, e os de Porto Natales, os tira-piedras — algo como chimango e maragatos sem sangue.

Promotora do hotel Tierra Patagônia, Constanza Leiva é de Santiago do Chile. Sua família viajava ao sul para comprar porcelanas e chás ingleses que chegavam ao porto de Punta Arenas. Sabe das particularidades locais.
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— Os mapuchos se orgulham de um lustro cultural trazido pelos navios estrangeiros. Mas os tira-piedras se orgulham da vizinhança próxima com a Cordilheira del Paine. Sentem como ninguém o vento das geleiras do alto dos granitos — diz Constanza.
Os ventos são intensos em dezembro, janeiro e fevereiro. É a chance de curtir na Patagônia temperatura de 20°C. Em março e abril, as folhas começam a avermelhar. O frio aumenta em maio e junho, cai neve e, no lado argentino, abre a temporada de esqui. O hotel Tierra Patagônia fecha com a chegada do inverno. Não há como oferecer serviços no gelo à beira do Paine. Em julho, a Patagônia argentina é mais concorrida, em Ushuaia e Calafate. As baleias chegam logo depois a Puerto Madryn. A neve é mais forte em agosto nas estações.
Mas o verde ressurge em outubro e novembro. É quando o pampa ajuda a redescobrir os mistério chilenos da Cordilheira del Paine.
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*O repórter viajou a convite do Tierra Patagonia Hotel & Spa