Um crime silencioso, clandestino, de poucos vestígios e que não difere classe social, capaz de deixar marcas para o resto da vida. Um levantamento feito pelo jornal A Notícia junto a Gerência de Estatística e Análise Criminal da Polícia Civil mostra que, entre janeiro e dezembro de 2021, 102 crianças de zero a 11 anos foram estupradas em Joinville e 44 em Blumenau. Isso significa uma vítima a cada dois dias. Conforme os dados, a maior cidade do Estado teve cerca de 45% a mais de casos de violência sexual durante o ano passado que o município do Vale do Itajaí.
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Das 146 crianças que sofreram estupro, as meninas representam a maioria. Em Joinville, o ano que mais teve ocorrências do crime foi em 2019, quando 128 crianças foram vítimas.
Confira no gráfico abaixo:
Já em Blumenau, 2020 foi o ano que mais teve casos de estupro de vulnerável, com 60 vítimas.
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Veja o gráfico:
Os números mostram ainda que a maior incidência deste crime ocorre entre menores de 3, 4, 7 e 11 anos. Raquel se encaixa neste perfil e estava no início da adolescência quando conta ter sido abusada por um médico que atendia num posto de saúde, em uma cidadezinha que morava com a mãe e a irmã.
Este homem, inclusive, está preso desde outubro do ano passado no Presídio Regional de Joinville, suspeito de cometer o mesmo crime contra outra paciente que atendeu na unidade básica do Iririú.
Vidas marcadas
Era início de junho. A cidade se preparava com as decorações das festas de São João e as crianças ensaiavam dança da quadrilha na escola. Mônica* e as duas filhas, Raquel* e Joana*, saíram do Rio de Janeiro por causa de uma vaga de trabalho da mãe e viviam há cinco anos em um vilarejo da Bahia, com pouco mais de 3 mil habitantes — se considerar a área rural.
A casa onde moravam fazia divisa com uma praça central, era rodeada por uma igreja, dois mercadinhos, uma escola, a casa da rezadeira e um postinho. E foi justamente o que aconteceu nesta unidade de saúde, em meados de 2010, que marcou a vida da família para sempre. Mônica conta que Raquel, a mais velha das filhas, foi abusada sexualmente por um médico que atendia na cidade.
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Como se tratava de uma localidade pequena, todos se conheciam aos arredores e, por isso, as informações corriam rápido. Por se alimentar mal, segundo Mônica, Raquel vinha sofrendo com desmaios constantes. Um dia, na volta do colégio, por volta do meio-dia, Joana foi para a casa de uma amiga, enquanto que Raquel, assim que desceu do ônibus escolar, resolveu passar no mercado e comprar algumas coisas.
— Quando ela passou pelo posto, ele [o médico] estava do lado de fora, fumando um cigarro. Como era horário de almoço, não tinha ninguém lá. E ele falou pra ela: “você não é aquela menina que tem desmaiado às vezes?”. Ela confirmou. “Você menstrua?” ele emendou a pergunta. A Raquel disse que não, justificando que tinha ovário micropolicístico. Aí ele falou “vamos lá no meu consultório para eu te examinar” — lembra a mãe.
A jovem, sem desconfiar, aceitou o convite do médico. Assim que ela entrou na sala, segundo Mônica, o homem trancou a porta. Em seguida, a mandou deitar de lado, de costas para ele, e a violentou com as mãos, enquanto tocava o próprio órgão genital.
— Ele também apertou os seios dela. Quando terminou, a mandou pra casa e falou pra ela arrumar uma mochilinha e, na manhã seguinte, dormir na casa dele para que pudesse fazer novos exames. Anos depois, ela disse que ficou muito confusa e muito dolorida na época, mas que sangrou, então, de certa forma, achou que ele a tinha curado — relata Mônica.
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A mãe conta que, ao chegar em casa, a filha não citou o estupro, apenas disse que o médico a havia convidado para dormir na casa dele. No mesmo instante, a mulher foi atrás do médico junto de seu companheiro na época, para tirar satisfação. Ela lembra que, por se tratar de um local muito pequeno, não havia base da polícia e nem sede do Conselho Tutelar.
— Raquel só me contou toda essa história quando tinha 21 anos. Mas, depois que isso aconteceu, ela começou a sentir muito medo das coisas e, no ano seguinte, voltou para o Rio de Janeiro, para morar com o pai. Eu fiquei com a minha caçula nesta vila, no sul da Bahia — se recorda.
Após ficar sabendo da história completa, Mônica diz que começou uma saga por justiça. Novamente por questões profissionais, ela chegou a vir a Joinville a trabalho e descobriu que o médico estava também na cidade. Neste meio-tempo, Mônica buscou ajuda de um advogado que prometeu levar o caso à frente, mas tomou um golpe e perdeu muito dinheiro. Ela chegou até tentar ir atrás do médico para confrontá-lo, mas desistiu. Só em 2018 que o caso entrou na Defensoria Pública de Santa Catarina, quando Raquel já era adulta.
Até hoje, não há um desfecho, e o processo está em segredo de justiça. A família já mudou-se da cidade, as filhas, formaram-se na faculdade. Atualmente, Raquel faz mestrado, mas apesar de parecer, a vida não seguiu normalmente.
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Por causa da separação das irmãs, a mais nova, Joana, entrou em depressão. Raquel sofre com transtornos de ansiedade e toma medicamentos psiquiátricos. Já a mãe vive uma inquietação do desejo por justiça.
— Afetou a família toda — confessa Mônica.
*Nomes fictícios para preservar a identidade da vítima e seus familiares.
Perfil dos abusadores e prisões em Joinville

De acordo com o delegado Pedro Alves, da Delegacia de Proteção à Criança, Adolescente, Mulher e Idoso (Dpcami) de Joinville, em grande parte dos casos os abusadores são homens, que possuem entre 40 e 60 anos.
Nas últimas duas semanas de dezembro, segundo o delegado, pelo menos cinco suspeitos que se encaixam neste perfil foram presos em Joinville por estupro de vulnerável. Alves explica que o que tem sido determinante nessas prisões é que mais vítimas têm denunciado os crimes e buscado a polícia.
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— Em paralelo a isso, a equipe está conseguindo direcionar melhor o serviço. Tivemos um incremento nas equipes após a formação na Academia de Polícia em 2021. Então, isso também acabou influenciando nos resultados — explica.
Apesar do volume de prisões, Alves afirma que o estupro de vulnerável é considerado um crime clandestino, ou seja, cometido em ambientes em que estão apenas a vítima e o abusador, o que dificulta na investigação desses casos.
Um quarto, uma sala ou algum outro local da casa, em quatro paredes. Nessas situações, a dificuldade está em, justamente, conseguir coletar informações que ajudem a confirmar o abuso. Por isso, o depoimento da vítima acaba sendo o principal elemento.
— O depoimento no crime sexual tem um valor muito grande. A depender da riqueza de detalhes que a criança traga, vamos montando um quebra-cabeça, considerando todo contexto daquela convivência. Assim, identificamos a situação de forma mais completa e prosseguimos com as investigações — destaca.
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Abusador está acima de qualquer suspeita

Embora se tenha a ideia que a violência sexual seja praticada na rua ou em locais com pouco ou nenhum acesso a informação ou políticas públicas, segundo o delegado Pedro Alves, o abusador pode estar dentro de casa, fazer parte do convívio familiar e não escolhe classe social.
Esta, inclusive, é uma das peculiaridades deste crime: ele ocorre, em 90% das vezes, no âmbito familiar. Ou seja, é cometido por tios, avós, padrastos e pais. Pessoas acima de qualquer suspeita. O estupro de vulnerável foge de qualquer padrão pré-estabelecido de crimes praticados na área externa.
— Ele [o criminoso] aproveita-se do contato facilitado que tem com a criança, até pela própria confiança que a família deposita naquela pessoa. Às vezes, é um avô que toma conta da vítima, um tio que vai visitar e leva para passear. E isso acaba gerando certa vulnerabilidade nessas crianças. A vítima não encontra recursos pra se defender, às vezes nem sabe que aquilo se trata de um abuso sexual — afirma.
Isso, segundo o delegado, gera outro dificultador na descoberta dessas situações. Ainda mais quando o criminoso utiliza artimanhas e força a criança a acreditar que ela é culpada pela violência que está sofrendo, faz chantagens ou ameaças.
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— “Se contar pra sua mãe ela vai te bater, colocar de castigo”. “Se contar, você vai morrer, vou agredir a família toda”. Há casos em que isso aconteceu. O abusador também tenta comprar esta criança dando brinquedo, dinheiro, doces. É uma forma que faz com que a criança, ao mesmo tempo fique em silêncio, permaneça naquele círculo vicioso de ser acessada pelo abusador — exemplifica.
Crime sem vestígios que deve ser prevenido

Cristina Maria Weber, psicóloga policial da Dpcami de Joinville, reforça que a violência sexual deve ser prevenida. Ela explica que uma criança que foi vítima do crime pode ser “assintomática” e não demonstrar sinais de que foi abusada.
Além disso, ela afirma que não existe indicativos específicos e nem uma síndrome de violência sexual. Algumas vítimas até podem apresentar alterações no comportamento, mas isso também pode estar associado a outras vivências dela, explica.
— Eu bato sempre na tecla que a família não tem que estar atenta a sinais de abuso sexual, a família precisa estar preparada para ensinar a criança a não ser uma vítima de abuso sexual. Quando se espera até identificar [alguma alteração no comportamento], o risco de levar muitos e muitos anos para saber que esta criança foi vítima é muito grande — diz.
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O papel dos pais e responsáveis, neste sentido, é buscar informações de como o abusador costuma agir e as chantagens que geralmente usa para, assim, alertarem as crianças.
— Se ela não receber esta informação dos responsáveis, ela vai receber através do abusador, e daí ele vai jogar com ela. Vai ameaçar, justificar que é um tipo de carinho, uma brincadeira, que é um segredo. Vai desencorajar a criança a contar. Ele joga e a criança não sabe. Mas se os pais foram lá antes e conversaram como funcionam essas estratégias, ela já vai estar prevenida — determina.
Além disso, é preciso entender o que é o estupro e a violência sexual, diz a psicóloga. Cristina diz que existe muito a ideia de que ocorre o abuso somente quando há penetração ou toque nas partes íntimas, mas o crime não se configura apenas desta forma. Desde 2009, a legislação brasileira considera que estupro é qualquer prática libidinosa contra a pessoa sem o consentimento dela. Seja por meio de violência ou mediante a grave ameaça.
— Uma passada de mão onde a pessoa se sinta desconfortável, um beijo elacivo, sexo anal, sexo vaginal, sexo oral… Tudo pode ser considerado estupro hoje em dia. Se for contra criança ou menor de 14 anos, independentemente do consentimento dessa criança ou adolescente, é considerado estupro de vulnerável — explica o delegado Pedro Alves.
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— “Vamos ver o que aconteceu através do exame de corpo de delito”, costumamos ouvir. Mas a maioria dos crimes não deixa vestígios. E fica a crença que, como não foi comprovado, é porque não ocorreu. Mas, independente de ter tido contato ou não, pode se caracteizar uma violência sexual — completa Cristina.
Como agir
A psicóloga destaca que o apoio da família é essencial quando a criança relata ter sido vítima do abuso. Apesar de chocante, ela recomenda evitar reações dramáticas e que o familiar acolha o que esta está sendo dito, sem ficar questionando os mínimos detalhes, já que isso pode constranger a vítima.
E, claro, se o crime acabou de acontecer, o primeiro passo é buscar a Polícia Civil, através da Dpcami, pelo 180, registrar um boletim de ocorrência pela internet e, em seguida, iniciar um tratamento psicológico.
Cristina diz que as consequências tendem a ser mais graves quando a criança é abusada por alguém com quem tem um vínculo mais próximo, depende da frequência e o tempo que o crime é praticado e, também, da reação dos familiares. Esses elementos, segundo ela, podem tanto acentuar como diminuir o trauma.
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— Essa situação acaba mexendo com todos. Há casos em que a mãe vem denunciar a situação da filha, por exemplo, mas ela própria já passou por isso. Então, toca em outras feridas. Falar sobre violência sexual é falar sobre nossas dificuldades também, porque nós não recebemos educação sexual pra prevenção de abusos. É uma cultura que precisamos rever pra tirar debaixo do tapete. Não adianta empurrar que vai acontecer — alerta.
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