Jesus estava em algum ponto entre Betânia e Jerusalém, na antiga Judeia, quando a fome começou a bater. Ao avistar uma figueira que, verdejante, destacava-se na paisagem árida, decide ir até ela. Mas, chegando perto da árvore, nada encontra senão folhas – porque não era tempo de figos. Irado com o malogro e testemunhado pelos discípulos, ele a amaldiçoa: “Nunca mais coma alguém fruto de ti”. E segue para a Cidade Santa, onde expulsa os vendilhões do templo. Na volta, os apóstolos reparam que a figueira secara inteiramente, da copa às raízes.

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Confira os oitos principais momentos da visia do papa em Florianópolis

Encarregada da limpeza da Arquidiocese de Florianópolis, a sorridente Ana Maria Santiago Laurindo fecha o semblante só de lembrar da passagem bíblica (Marcos, 11:12-20), associada à infertilidade. Em 1991, ela já tinha comemorado dois aniversários de casamento com o taxista Vilmar e não conseguia engravidar. Era, na crendice popular, uma “figueira seca”, como os mais indelicados classificavam a situação. Devota de Nossa Senhora Aparecida, a católica praticante resignava-se, na fé de que “tudo tem sua hora, Deus sabe o que faz”.

A visita de João Paulo 2º a Florianópolis, há 25 anos, renovou as esperanças de Ana Maria. Em 18 de setembro de 1991, após celebrar a Missa de Beatificação de Madre Paulina no aterro da Baía Sul, o papa e sua comitiva foram almoçar no Palácio Episcopal, que divide com a Cúria Metropolitana o amplo terreno da arquidiocese. Da cozinha em que então trabalhava como auxiliar, ela escutava a empolgação das mais de 2 mil pessoas na rua em frente ao casarão. Até que resolveu tentar ver o Santo Padre também.

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– Eram 12h30, por aí. Estava tudo pronto, a comida toda preparada. Fui dar uma espiadinha. De repente, o (arcebispo) D. Eusébio Scheid me chamou: “Ana, Ana, vem cá”. E me apresentou ao papa. Ele colocou a mão na minha cabeça e me abençoou. Emocionada, pedi em pensamento para ficar grávida – recorda a senhora de 56 anos.

Ao retornar aos seus afazeres naquela tarde, Ana Maria foi recebida pela algazarra das colegas, eufóricas com o ocorrido. À noite, foi Vilmar quem soube que ela havia estado cara a cara com o representante de Deus na terra. Na pior das hipóteses, a manezinha que morava com o marido nos fundos da casa da irmã, no bairro Bela Vista, em São José, na Grande Florianópolis, teria uma bela história para contar. Na melhor, um filho para ouvi-la: esta aqui na foto com o papa é a mãe.

Na primeira vinda ao Brasil, em julho de 1980, João Paulo 2º deu o ar da graça em 13 cidades de 11 Estados e do Distrito Federal. Santa Catarina ficou de fora. Não ficaria da próxima. As tratativas que culminaram na visita do papa a Florianópolis se iniciaram em abril de 1989, com o envio de uma carta assinada por 198 bispos à Vossa Santidade. A mensagem expressava gratidão pela recente promulgação dos decretos das Virtudes Heroicas e do Milagre de Madre Paulina do Coração Agonizante de Jesus. Solicitava, também, que a beatificação da fundadora da Congregação das Irmãzinhas da Imaculada Conceição – processo obrigatório para torná-la santa – fosse realizada em território nacional. 

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A missiva, aliada ao crescimento da parcela de evangélicos em uma população majoritariamente católica, sensibilizou João Paulo. O anúncio pelo Vaticano de uma nova viagem ao país programada para o segundo semestre de 1991 motivou a redação de outra carta. Nesta, datada de outubro de 1990, o arcebispo de Florianópolis à época, D. Afonso Niehues, e o bispo auxiliar, D. Murilo Krieger, reforçavam ao Núncio Apostólico do Brasil o apelo pela inclusão do único Estado da região Sul que não tivera a alegria de recepcioná-lo dez anos atrás. E lançavam a capital como candidata a sediar a celebração eucarística na qual Madre Paulina seria beatificada.

Na esfera política – afinal, além de chefe da Igreja Católica, o papa era um chefe de Estado –, o recém-eleito governador Vilson Kleinubing tratou de contatar o Ministério das Relações Exteriores para obter uma audiência com o pontífice em Roma. Em 7 de novembro, lá estava ele, para fazer o convite formal a João Paulo 2o. No dia 26, a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) pediu a D. Niehues informações sobre Nova Trento, cidade onde Madre Paulina despertou para a vocação religiosa. A confirmação de Santa Catarina no roteiro papal estava cada vez mais perto.

Em 13 de janeiro de 1991, uma comitiva composta por emissários do Vaticano e de Brasília desembarcou em Florianópolis. Um mês depois, foi definido o programa oficial da segunda vinda de João Paulo 2º ao Brasil. A 53a viagem apostólica internacional do papa que já havia voado 780 mil quilômetros (12 vezes a distância da Terra à Lua) por mais de 100 países dos cinco continentes para espalhar a palavra divina duraria de 10 a 21 de outubro e percorreria dez capitais – entre elas, a catarinense.

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Não havia tempo a perder. Para coordenar a comissão responsável pelos preparativos da arquidiocese, D. Afonso, seu substituto a partir de junho, D. Eusébio, e D. Murilo convocaram o padre Vilmar Adelino Vicente, 38 anos, professor do Instituto Teológico de Santa Catarina.

– Fiquei surpreso, porque fazia apenas um ano que tinha sido ordenado. Eles disseram que me escolheram porque eu era daqui, conhecia a cidade inteira. O protocolo vinha do Vaticano, estabelecendo programação, deslocamentos, horários. Tudo muito simples, tanto que quase todas as nossas sugestões foram aceitas – diz ele, filho de um militar e de uma dona de casa, criado na Prainha.

O que não era simples estava a cargo dos governos estadual e federal: a segurança, preocupação que beirava à paranoia após o atentado sofrido pelo papa em 1981. Foram necessárias diversas inspeções e vistorias para aprovar o itinerário, os acessos e os locais pelos quais João Paulo 2o passaria, e mesmo assim com ressalvas e alterações de última hora. 

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O papa chegaria ao anoitecer do dia 17 de outubro e dormiria na Residência dos Jesuítas do Colégio Catarinense. Na manhã seguinte, celebraria a missa de beatificação de Madre Paulina no aterro da Baía Sul, almoçaria no Palácio Episcopal e, à tarde, participaria de dois encontros, um ecumênico no Colégio Catarinense e outro com as religiosas no Ginásio do Sesc. Dali, iria de helicóptero para a Base Aérea e embarcaria para Vitória. A esticada até Nova Trento foi descartada.

O orçamento preliminar apresentado pelo vice-governador Antonio Carlos Konder Reis, presidente da comissão estadual dedicada à visita sagrada, estipulava a necessidade de 2,16 bilhões de cruzeiros para a tarefa. A cifra compreendia despesas com saúde, segurança, transporte, comunicações, saneamento básico, pavimentação e com a construção do altar onde seria rezada a missa da beatificação. O dinheiro viria do governo federal, chefiado por Fernando Collor de Mello.

A demora do Planalto em abrir o cofre motivou o governador Kleinubing a determinar a elaboração de uma estimativa de custos mais modesta, que contemplasse somente o indispensável para Florianópolis receber João Paulo 2o. De acordo com o projeto de lei submetido à Assembleia Legislativa, o Estado investiria 720 milhões de cruzeiros (equivalente a R$ 15 milhões em valores corrigidos), dos quais apenas 3% em melhorias específicas para a estada do papa. O restante seria distribuído em rubricas como a aquisição de equipamentos para a Secretaria de Segurança, para a sinalização do sistema de trânsito e para os hospitais de Caridade e Celso Ramos. Os deputados aprovaram a proposta por larga maioria. O único voto contrário foi de Marcelo Rêgo, o que causou certo espanto por ele pertencer ao Partido Democrata Cristão (PDC). A divulgação na imprensa dos gastos públicos relativos à visita provocou polêmica – a ponto de D. Eusébio sentir-se no dever de emitir uma nota de esclarecimento. Expedido em 15 de agosto, no documento o bispo fazia uma série de questionamentos sobre a capacidade da infraestrutura local ante tão grandioso acontecimento e ressaltava: “Não se pode esquecer de que o papa estará em Florianópolis por 22 horas, mas as obras que puderem ser feitas permanecerão para benefício do povo”.

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A arenga ficou para trás tão logo João Paulo 2º desceu na Base Aérea. Por onde passou, encantou com seu carisma, espontaneidade e disposição. Fez questão de cumprimentar todos que lhe serviram, conversou às refeições como se estivesse em uma reunião de família, quebrou o protocolo para se aproximar dos fiéis. O momento alto de sua missão em solo ilhéu, porém, foi a cerimônia no aterro da Baía Sul. 

– O povo catarinense deu uma intensa demonstração de fé e carinho pelo papa – descreve o arcebispo de Florianópolis desde 2011, D. Wilson Tadeu Jönck, que estava na plateia como um humilde servo de Deus que trabalhava em um convento em Brusque.

Os números e dimensões da solenidade também impressionaram. O altar ocupava uma plataforma de 200 metros quadrados com 3,5 metros de altura, erigida em concreto pré-moldado e coberta por telhas de alumínio. De um lado, havia uma cruz metálica de 16,8 metros. Do outro, tremulavam as bandeiras do Brasil, de Santa Catarina e do Vaticano. Na decoração, o artista plástico Aldo Duarte usou mais de 10 mil flores. Mil vozes compunham o coral. O fiel que não figurasse entre os 115 católicos selecionados – autoridades, políticos e a fina flor da sociedade local – para tomar a hóstia pelas mãos do próprio papa comungaria com algum dos 500 ministros extraordinários. O público estimado foi de cerca de 60 mil pessoas.

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Ana Maria Santiago Laurindo tentava engravidar há dois anos quando recebeu a bênção do papa. Em 1992, o bebê nasceu e foi batizado como João Paulo; hoje tem 23 anos Foto: Arte_DC / Agência RBS

Poderia ter sido bem maior, não fosse a chuva. Ainda na Residência dos Jesuítas, D. Eusébio não escondeu a frustração com o temporal, lamentando pelo povo já postado no aterro da Baía Sul à espera de João Paulo 2o. Em tom descontraído, o arcebispo perguntou ao papa se São Pedro mandava ou não no céu. “Vou pedir uma ajuda a ele”, respondeu o pontífice, conforme relata o jornalista Moacir Pereira no livro O Profeta da Esperança, rica fonte de informações para esta reportagem. 

– A mídia também contribuiu para afugentar o público. À medida que se aproximava o dia da missa, dizia que não caberia todo mundo, que seria um caos – reclama o padre Vilmar.

De fato, quem lesse os jornais, assistisse à TV ou ouvisse o rádio pensaria que estava prestes a estourar uma guerra, não a ser realizada uma missa. As recomendações veiculadas à população incluíam colar etiquetas nas roupas dos filhos com nome, telefone e endereço; levar roupas adequadas tanto para o calor quanto para o frio; não ir de carro porque o trânsito seria alterado e os veículos ficariam no continente; e que só entrariam na ilha ônibus contratados pela prefeitura e pedestres.

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De olho na potencial clientela – a expectativa alardeada era de que apareceriam cerca de 500 mil pessoas –, Rita Pascale teve a ideia de ganhar um dinheirinho extra com os fiéis. Em parceria com a irmã Cida, alugou uma das barracas que a prefeitura oferecia aos ambulantes no antigo terminal de ônibus. Uma venderia velas; outra, sanduíches, bolos e cucas. Para garantir um bom lugar, ela virou a noite no local, sob o frio vento sul que soprava sem dó nem piedade. Para completar o cenário, o dia amanheceu com uma chuvarada.

– Foram tantos alertas que o povo, amedrontado, preferiu ficar em casa e ver o papa pela televisão. A missa acabou, as pessoas foram embora e ninguém vendeu nada. Nossas tias ainda compraram os doces. Os sanduíches, doamos a uma creche no Morro da Mariquinha. E as velas voltaram para o depósito improvisado embaixo da minha cama. Não conseguia me esquecer delas porque tinha que espaná-las uma vez por semana – conta a aposentada Rita, 63 anos, aos risos. 

A desventura da comerciante acidental não consta dos 17 volumes que conservam a memória da visita do papa a Florianópolis no arquivo da cúria metropolitana. O acervo está sendo catalogado pelo estudante João Augusto de Farias, 21 anos, filho de um casal de coralistas que participou da missa, para o trabalho de conclusão do curso de Arquivologia na UFSC. Muito menos o desfecho da história da Ana Maria Santiago Laurindo. Depois de dois alarmes falsos, a ex-auxiliar de cozinha engravidou em março de 1992. O bebê nasceu em dezembro e foi batizado com o nome do papa a quem ela pediu a graça. João Paulo vai se casar no mês em que completará 24 anos. 

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