A história da Argentina parece imitar um vertiginoso tobogã, que se eleva ao topo da euforia para depois cair abruptamente, sem dar tempo para tomar fôlego. No momento, desce a ladeira, imersa numa crise que resultou em inflação manipulada, congelamento de preços, ataques à imprensa, a volta dos panelaços, greves e conflitos sem fim protagonizados pela presidente Cristina Kirchner.
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A montanha-russa de 40 milhões de argentinos foi diagnosticada por um de seus mais argutos intérpretes, o escritor e médico Marcos Aguinis. Aos 77 anos, autor de ensaios premiados, alerta que mais espantos virão.
– Ainda não chegamos ao fundo do poço – destacou em entrevista a ZH.
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Um país na montanha-russa Continua depois da publicidade
Esperteza ofusca brilho da elegância
Controle de preço, controle de tudo
“Arrogância de hoje é para cobrir a vergonha”
Cristina não quer largar o cetro
Galeria:As várias faces da crise na Argentina
Confira a lista de tangos usadas nas páginas do caderno especial
A noite de sexta-feira evidenciou a percepção de Aguinis. Milhares de manifestantes ocuparam a Praça de Maio para cobrar justiça e condenar a corrupção. Lembraram o desastre ferroviário no bairro Once, que completou um ano sem punição aos responsáveis por 51 mortes.
O governo também enfrenta panelaços – houve quatro no ano passado. São convocados pelas redes sociais por um grupo que se intitula Argentinos Indignados. Em dezembro de 2001, liderados pela classe média, os panelaços foram tão ruidosos que ajudaram a derrubar o então presidente Fernando de la Rúa. Encerraram 740 dias de um governo titubeante, que mergulhou o país no caos.
Cristina se indispõe cada vez mais com a classe média, mas não pode ser comparada ao débil governo De la Rúa. Alheia aos ecos das panelas vazias, manda e desmanda, desqualifica a oposição, insulta desafetos e processa quem se atreve a contestar.
Na montanha-russa, o vagão da economia parece prestes a descarrilar. No coração turístico e financeiro de Buenos Aires, fiscais de colete preto da Afip (equivalente argentina da Receita Federal) expulsaram cambistas informais da Rua Florida para evitar que negociassem dólares e euros. Mas os arbolitos (arvorezinhas), como são conhecidos, voltaram em bando, furando a lei que tenta conter o comércio de moeda.
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Na terça-feira, o brasileiro Dario Coutinho, 42 anos, há 15 no país, desempenhava-se como arbolito na esquina da Florida com Viamonte. Usando a camiseta 10 do Bahia, rimava:
– Câmbio! Dólares, euros e reais, aqui baiano paga mais!
Se interessados em trocar dólares ou reais fossem a um banco, comprariam 4,98 pesos argentinos com um dólar. No câmbio negro, com Dario, receberiam 7,40 pesos por um dólar.
Em outubro de 2011, ano em que a fuga de capitais chegou a US$ 20 bilhões, o governo começou a controlar o câmbio. As medidas foram apelidadas de corralito verde, em referência à limitação imposta aos saques pouco antes da queda de De la Rúa. Toda compra de dinheiro passa pela Afip, sufocando turismo e poupança.
Desde então, o torniquete aperta. Em maio passado, a Afip passou a exigir de quem precisa comprar dólares para viajar, formulário preenchido com país de destino, datas, escalas dos voos, além do motivo da viagem.
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Desde julho, quem envia mais de US$ 1,5 mil a familiares no Exterior deve pedir autorização ao Banco Central. No mês seguinte, mais restrições: compra de moeda ou mercadoria estrangeira é taxada em 15%. Se no Brasil seria difícil, na Argentina é pior: a cabeça do portenho é dolarizada, desde antes de Carlos Menem inventar que um peso valia um dólar.
Pobres na rua, mas fora da estatística
Imagine o que é viver em um país onde se desconhece a inflação verdadeira. Onde os trabalhadores ignoram se o salário foi corroído em 9% ou por estratosféricos 25% ao ano. Como abrir uma poupança para o filho, se os índices são manipulados? Como financiar a casa própria, se o desemprego cresce de forma invisível sem o alerta de estatísticas confiáveis?
Pois os argentinos tateiam no escuro dos números desde 2007, quando o então presidente Néstor Kirchner interveio no Instituto Nacional de Estatísticas e Censos (Indec). Destituiu os técnicos de carreira, nomeou simpatizantes políticos. É como se o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a bússola verde-amarela, fosse controlado para dourar a realidade.
Desde a intervenção no Indec, o governo admite inflação anual de 9%, enquanto consultorias independentes apontam índice não inferior a 20%, podendo chegar a 25%. Abissal, a diferença também ocorre nas aferições sobre cesta básica, taxas de pobreza e desemprego, valor médio dos salários.
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É como se houvesse duas matemáticas. O economista Matías Carugati, da Management & Fit, de Buenos Aires, diz que cálculos próprios, baseados em índices de preços das províncias (equivalente a Estados), situam a taxa de pobreza urbana em 18,1%. A rural não poderia ser contabilizada.
– É praticamente o triplo das estatísticas oficiais, de 6,5% – diz Carugati.
Economista-chefe da Management & Fit, ele afirma que a situação social parece estabilizada, com possibilidade de “leve piora” nos próximos meses. Carugati diz que os empregados com carteira assinada não foram tão atingidos pelo segundo ano consecutivo de desaceleração econômica, mas os informais e os que dependem de planos sociais não tiveram “um bom 2012”.
Escudeiro econômico de Cristina Kirchner, o secretário de Comércio Interior, Guillermo Moreno, ficou contrariado com a divulgação de índices que revelariam o cenário real. Reação: processou judicialmente 11 consultorias privadas nos últimos dois anos.
Punidas com multas, aplicadas por juízes servis ao kirchnerismo, as empresas estão mais cuidadosas. Uma delas, que faz exames e prognósticos para a Argentina e o Cone Sul, não respondeu a pedidos de entrevistas de ZH. A Management & Fit, por enquanto, não foi alcançada pelo autoritarismo de quem não aceita a divergência.
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A manipulação é tão escrachada que o Fundo Monetário Internacional (FMI) emitiu, no último dia 1º, moção de censura contra a Argentina, voltando a cobrar seriedade nas estatísticas. Seria a primeira vez, na história da instituição, que um país sofre tal advertência. O pito do FMI pode resultar em expulsão e cancelamento de novos empréstimos, se Cristina Kirchner não se emendar. A censura era esperada, porque a diretora do FMI, Christine Lagarde, havia advertido:
– A Argentina já tem cartão amarelo, agora tem de escolher se quer também o vermelho.
O que o governo tenta mascarar, as ruas escancaram. Quando anoitece, moradores de rua fazem camas de papelão sob as marquises das lojas. Na esquina das ruas Lavalle e Suipacha, dois homens se acomodavam sobre sacos de lixo reciclável, o ganha-pão transformado em lar. Diante do prédio da Confeitaria Richmond, na Florida, antigo endereço da elite, um rapaz estendia um colchão de espuma para dormir.