*Por Corey Kilgannon

NOVA YORK – Doug Roland, um cineasta, estava voltando para casa a pé depois de uma balada, às quatro da manhã, no East Village, quando viu um homem parado em uma esquina deserta, precisando de ajuda.

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Depois de tentar falar com ele, Roland, de 35 anos, percebeu que ele segurava uma placa explicando que tinha deficiência visual e auditiva e precisava de ajuda para atravessar a rua. Em seguida, ele rabiscou em um caderno que também precisava de ajuda para encontrar o ponto de ônibus mais próximo.

"Foi a primeira vez que cruzei com um surdo-cego e ele simplesmente segurou meu braço e confiou em mim – um estranho em uma rua de Nova York – para guiá-lo", lembrou Roland, que instintivamente usava seu dedo para indicar o fim da conversa na palma da mão do homem, que respondia usando um caderno.

"Havia um presente em cada uma dessas trocas. Naquele encontro por acaso, houve uma conexão instantânea com alguém de uma comunidade da qual eu não sabia nada", afirmou Roland.

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Isso ocorreu em 2011, mas ficou na cabeça de Roland, que no fim do ano passado lançou "Feeling Through", um filme de 18 minutos inspirado naquele encontro cheio de serendipidade.

O filme é uma janela para o tão desconhecido mundo das pessoas surdo-cegas. Um encontro no meio da madrugada, em uma rua de Nova York, cria uma conexão espiritual entre um jovem problemático e um homem surdo-cego.

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(Foto: Vincent Tullo / The New York Times )

O filme normalmente é exibido como parte de uma apresentação chamada "The Feeling Through Experience", que inclui um painel de discussão e um documentário de 24 minutos sobre como o filme foi feito.

Em vez de usar um ator simulando a surdo-cegueira do personagem principal, Roland não abriu mão de encontrar um homem surdo-cego para o papel, tanto para manter o realismo dramático quanto para afirmar as capacidades de alguém que possui uma condição que pode parecer debilitante.

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Como ele não conhecia atores surdo-cegos, Roland foi atrás do mesmo homem que conhecera naquela noite, mas tudo o que sabia era seu apelido, Artz, e ele não conseguiu encontrá-lo.

A serendipidade – a faculdade ou o ato de descobrir coisas agradáveis por acaso – atacou novamente e o fez encontrar outro homem surdo-cego – um funcionário de uma cozinha de Long Island sem experiência como ator. Robert Tarango, de 55 anos, talvez seja o primeiro ator surdo-cego em um papel principal no cinema.

Acompanhando Roland a inúmeras exibições e apresentações em todo o país, Tarango também acabou se tornando um porta-voz da comunidade de surdo-cegos, dedicado a educar o público.

Os espectadores podem até conhecer "O Milagre de Anne Sullivan" – o filme de 1961 sobre Anne Sullivan, a professora cega de Helen Keller –, mas, em geral, não sabem muito sobre como é lidar com a surdo-cegueira.

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(Foto: Vincent Tullo / The New York Times)

"A única surdo-cega que a maioria das pessoas já ouviu falar é Helen Keller. O filme de Doug é inovador ao trazer à tona na grande mídia alguém que é surdo-cego", disse Sue Ruzenski, diretora executiva do Centro Nacional Helen Keller para Jovens e Adultos Surdo-Cegos, em Long Island.

Para conseguir ajuda na produção do filme, Roland recorreu ao centro, que trabalha para conscientizar e quebrar estereótipos de que pessoas surdo-cegas são incapazes ou que levam vidas enclausuradas. O centro fornece treinamento em habilidades como cuidados pessoais, culinária e uso de um dispositivo Braille para operar smartphone ou computador, além de ajudar a integrar as pessoas nos trabalhos mais centrais.

"Ninguém jamais veio até nós para fazer um filme estrelado por um ator surdo-cego, e devo dizer que fiquei cético", confessou Ruzenski.

Depois de entrevistar mais de uma dúzia de candidatos, Roland ainda não havia encontrado o ator perfeito. Finalmente, um funcionário do centro perguntou: "E que tal o Robert?" Aquela sugestão não era óbvia. Por vinte anos, a vida de Tarango permaneceu focada em seu trabalho na cozinha do centro e em negociar seu longo e complicado trajeto no transporte público.

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(Foto: Vincent Tullo / The New York Times )

Aqueles mais próximos a ele, porém, conheciam sua personalidade efusiva e carismática. Então, como uma brincadeira, trouxeram-no da cozinha – ainda de avental, as mãos molhadas e um semblante intrigado.

"Ele achou que talvez estivesse com problemas", lembrou Roland, que mediante um intérprete contou a Tarango sobre o projeto do filme, cuja filmagem levaria vários dias.

Conseguir o papel foi uma reviravolta para Tarango – que, por não falar, se comunica quase que exclusivamente pela linguagem de sinais. Sua vida normal consistia em seu trabalho lavando pratos, servindo comida e estocando produtos em prateleiras. Mas, agora, ele estava perante uma oferta que realizaria seu sonho de infância.

Tarango cresceu surdo, mas com visão, no Arizona, e idolatrava atores dos filmes antigos como John Wayne, Henry Fonda e Burt Lancaster. Ele sonhava em ser ator de cinema, mas essa esperança diminuiu quando começou a perder a visão aos vinte anos, por causa da síndrome de Usher, um raro distúrbio genético.

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"De repente, me convidaram para estrelar um filme", disse ele, com a ajuda de um tradutor.

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(Foto: Vincent Tullo / The New York Times )

Contando com tradutores durante as filmagens em Nova York, há um ano, Tarango desenvolveu um vínculo com seu colega Steven Prescod, que interpreta Tereek, o adolescente problemático que ajuda o personagem surdo-cego de Tarango, Artie, a chegar ao ponto de ônibus.

"Quando o conheci e percebi que havia pessoas cegas e surdas, pensei: 'Como isso funciona?'", relembrou Prescod, de 27 anos, que descobriu que Tarango, como muitas pessoas surdo-cegas, recebe assistência de guias treinados e usa formas alternativas de adaptação e comunicação.

"Ele me ajudou como ator e definitivamente me inspirou enquanto eu atuava ao lado dele", acrescentou Prescod.

Prescod, que cresceu no Brooklyn, foi preso aos 16 anos por assalto a mão armada e acusações de agressão. Para evitar ficar preso por um longo período, ele se declarou culpado e cumpriu a pena em um programa de teatro reabilitativo.

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O programa, segundo ele, o ajudou a criar um espetáculo autobiográfico estrelado somente por ele, que foi visto em Manhattan, em 2014, pelo príncipe William, que passou seus contatos a Prescod e uma oferta para ajudar a produzi-lo em Londres.

Em uma exibição recente do filme em Manhattan, Tarango foi aplaudido quando se juntou a Roland e Prescod em um painel de discussão. Outro destaque foi Artz – Artemio Tavares, de 39 anos, do Bronx –, que Roland finalmente localizou somente após contratar Tarango.

Tavares se lembrou perfeitamente do encontro de 2011, mas aquela foi apenas mais uma de suas constantes interações com estranhos quando ele precisa de assistência ao andar sozinho pela cidade de transporte público, para fazer compras, socializar e ter aulas.

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(Foto: Vincent Tullo / The New York Times )

O carismático Tavares se comunica com seu próprio sotaque de Nova York, gesticulando ousadamente com a confiança de um rapper, e conta com um amigo ou um guia que conhece a linguagem de sinais para experimentar lugares como o Museu de Arte Moderna ou o Lincoln Center.

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Tavares usa um botão que avisa que ele é surdo e cego e mantém cartazes à mão pedindo ajuda para encontrar pontos de ônibus e estações de metrô. Ele consegue sentir quando o trem do metrô está chegando pela brisa que cria na estação e, depois de entrar, ele consegue sentir o trem parando em cada estação e conta as paradas até seu destino.

Tarango também usa transporte público guiando-se, principalmente, pela sua memória e usando sua bengala, mesmo quando passa pelas estreitas plataformas das estações de trem. Tarango vive de forma independente com um colega de quarto surdo. Quando não pode pegar carona com um colega de trabalho, ele faz um trajeto que pode levar até três horas em cada sentido e inclui um táxi, dois ônibus, um trem e um ônibus fretado.

Em um dia de semana recente, na volta para casa, depois de pegar um táxi, dois ônibus e a linha de trem de Long Island, ele se aproximou de um ponto de táxi, rabiscou seu endereço em um pedaço de papel e o entregou a um motorista de táxi.

Ele já tem várias viagens agendadas para exibir o curta em todo o país com Roland, que está arrecadando dinheiro para transformar o filme em um longa-metragem. "Talvez eu possa fazer a transição e me tornar um ator. Trabalho na cozinha há muitos anos, por isso rezo para ser escolhido para outro papel", disse Tarango.

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