Na primeira audiência de custódia depois da implantação definitiva do modelo em Santa Catarina, em 1o de outubro de 2015, Vivian (nome fictício) relatou ter sido agredida por policiais militares ao ser presa em uma comunidade da região continental da Capital. Na época com 27 anos e suspeita de traficar drogas, foi agredida com um soco na boca, confirmado por um laudo do Instituto-Geral de Perícias (IGP). Outro exame pericial, uma semana depois, voltou a constatar a pancada.

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A moradora da Capital, hoje em liberdade, representa uma em cada quatro pessoas que relataram a um juiz ter sofrido algum tipo de violência de agentes das forças de segurança no momento da detenção, principalmente de policiais militares. Das 2,4 mil pessoas ouvidas por um magistrado em Florianópolis de 1º de outubro de 2015 até o dia 24 do mês passado, 586 delas disseram que foram agredidas por servidores das polícias Militar e Civil, do Departamento de Administração Prisional (Deap) ou guardas municipais.

O índice, 23% do total das audiências realizadas apenas na comarca da Capital — a única de Santa Catarina que tem dados sobre violência —, coloca o Estado como o segundo do país com maior percentual de registro de abusos de autoridade durante a prisão, atrás apenas do Amazonas, com 38%. Os dados são informações dos Tribunais de Justiça ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

Para a desembargadora Cinthia Schaefer, coordenadora do Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC), o percentual de pessoas que denunciaram agressão é alarmante, mas há ressalvas:

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— Temos que depurar essas informações. Algumas vezes já se verificou o excesso, o abuso, de realmente baterem no cidadão depois de ele estar dominado. Isso, para mim, é inconcebível. Mas algumas vezes já se verificou, mesmo que o juiz não faça essa valoração, que algumas dessas denúncias não reportavam exatamente um abuso. Muitas vezes o cidadão corre, foge da prisão e acaba sendo dominado e se machuca.

Adotada no Brasil em 2015, em cumprimento a uma determinação do CNJ, as audiências de custódia foram criadas para que presos em flagrante sejam apresentados a um juiz em até 24 horas. O magistrado analisa a aplicação de penas alternativas e a Justiça apura denúncias de maus tratos pela polícia. Na Capital, os relatos de violência ocorreram em diferentes dias de todas as semanas em que houve sessões, cerca de 20 registros por mês.

Nas mais de 2,4 mil audiências já realizadas na Capital, a maioria dos presos foi homens, com ensino fundamental incompleto, com idade entre 19 e 35 anos, sem profissão definida. Já os principais crimes envolvem drogas (tráfico, uso e associação) junto com os patrimoniais (roubos, furtos, também em função das drogas). Em seguida, violência doméstica e embriaguez ao volante. Depois, casos de homicídio, latrocínio, estupro e outros.

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Em outras comarcas de Santa Catarina, as audiências de custódia começaram em maio do ano passado. Até hoje, foram 10,8 mil sessões em todo o Estado — considerando as primeiras em Florianópolis em 2015 e início de 2016. Desse total, 5,57 mil pessoas tiveram a prisão mantida, sendo que 5,26 mil foram liberadas com medidas cautelares.

Levantamentos com números diferentes

Os números repassados pelo TJSC ao CNJ, para que o órgão federal sistematize as informações, estão bem abaixo do que se extrai do levantamento completo das audiências em Florianópolis, fornecido à reportagem pelo próprio Tribunal. No levantamento do Conselho, que traz os relatos de abuso de autoridade no momento da prisão em todas as comarcas de Santa Catarina, foram contabilizados 314 registros entre outubro de 2015 e 30 de junho deste ano, 7% do total de casos, bem abaixo do levantado pela reportagem.

— É muita diferença entre 7% e 23%. O 7%, por si só, já é alto. Uma das funções da audiência de custódia é no prazo mínimo, de 24 horas, fazer com que o preso se apresente até porque é um tempo que permite se fazer um exame de corpo de delito com muita fidelidade. Agora, 23% é um dado altíssimo, alarmante, e temos que ter uma resposta sobre isso da polícia ostensiva — avalia o advogado José Sérgio da Silva Cristóvam, presidente da Comissão de Acesso à Justiça da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em SC.

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A explicação para a discrepância matemática dos números repassados pelo TJ na Capital à reportagem e os informados pela instituição ao CNJ é tido pela área técnica do Tribunal como “um controle maior na Comarca da Capital”, onde todas as informações são recolhidas desde outubro de 2015.

Depois, com a implantação das audiências em outras comarcas, esses dados passaram a ser anexados também ao sistema do CNJ, o Sistac. O problema é que, no interior do Estado, os plantonistas muitas vezes não preenchem os dados de forma integral, ou o sistema do CNJ falha antes da conclusão, entre outras mazelas, e essa conjunção de fatores gera a diferença entre os levantamentos, de acordo com o setor técnico do TJ/SC.

Mesmo considerando apenas os dados do CNJ, o índice catarinense, de 7%, ainda está acima da média nacional, de 4,9%. Está também classificado como quinto maior percentual do Brasil, mesmo sendo três vezes menor do que o dado real.

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Denúncias são encaminhadas para o Ministério Público

É através de correspondência eletrônica que o Ministério Público de Santa Catarina (MPSC) recebe as denúncias de possíveis crimes de abuso de autoridade que vêm das audiências de custódia. Até 13 de outubro deste ano, os procedimentos ficavam a cargo da 40º Promotoria de Justiça da Capital, criada em abril de 2016 para atuar no controle externo da atividade policial em Santa Catarina.

Em 13 de outubro, porém, o presidente Michel Temer (PMDB) sancionou a lei 13.491/17, que causou uma mudança procedimental quando o autor o caso for um policial militar. Agora, esses casos envolvendo PMs serão encaminhados para a 5ª Promotoria, cujo titular é o promotor Wilson Paulo de Mendonça Neto, que revela o estágio inicial de seu trabalho perante à demanda estadual:

— No relatório, não se cadastra somente os casos de audiência de custódia. Hoje (dia 07), por exemplo, eu despachei 10 casos de Joinville, de audiência de custódia de meses atrás, porque agora são de responsabilidade da promotoria. Dez casos que viraram procedimento investigatório. Quando confirmamos os casos, há processo, mas muitos não se confirmam — explica o promotor, que agora é responsável por todos as denúncias envolvendo PMs no Estado e espera organizar na 5ª Promotoria um cadastro para armazenar esses dados e informações.

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O caso de Vivian (nome fictício), que abre esta reportagem, se transformou em processo de abuso de autoridade e está concluso para sentença no TJSC. O Ministério Público, porém, pediu o arquivamento da ação. A justificativa da promotoria foi de que a mulher “não foi encontrada para ser intimada e comparecer na unidade policial para prestar os esclarecimentos pertinentes”. Quando fez o primeiro relato de agressão, ela teve a prisão convertida em preventiva. Permaneceu presa por pouco mais de quatro meses, sendo liberada em fevereiro de 2016. Já o MP pediu o arquivamento do processo em 24 de agosto deste ano.

A reportagem solicitou ao MPSC a quantidade de relatos de violência policial nas prisões em flagrante na Capital que se transformaram efetivamente em procedimentos investigatórios contra agentes do Estado, mas o órgão informou, através da assessoria de imprensa, que não é possível precisar quantos desses registros de abuso de autoridade tiveram prosseguimento na Justiça. A alegação do Ministério Público é de que a promotoria que cuidava dos casos envolvendo policiais denunciados em audiências de custódia, a 40º, foi criada meses depois da implantação das audiências.

Índice pode ser maior, destaca pesquisadora

A professora Giane Silvestre, pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV/USP), que também acompanhou audiências de custódia em São Paulo/SP e João Pessoa/PB, aponta que, além de o índice de 23% de relatos de abuso de autoridade em Florianópolis ser alto, “esse número pode ser ainda maior”, já que existem muitos casos “subnotificados”, especialmente em audiências com a presença de PMs na sala, como ocorre com frequência em Santa Catarina, de acordo com o levantamento qualitativo do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

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— A gente observa que, embora a audiência de custódia tenha a função de ser o canal de denúncia para a violência arbitrária no momento da prisão, ainda é pouco relatado esses casos. Em alguns, a audiência ainda não é o ambiente propício para denúncia da violência policial. Isso porque, há lugares em que ficam vários policiais na sala, fardados, e esse ambiente não é muito favorável para se fazer a denúncia — explica.

Outro problema, diz, acontece quando os relatos de violência policial são encaminhados ao MP. Para ela, citando São Paulo, não se sabe o que acontece com essas denúncias.

Audiências de custódia ainda carecem de melhor estrutura no Estado

Quase oito meses depois da implantação das audiências de custódia na Capital, a medida foi expandida para outras comarcas do interior, como Joinville, Lages, Blumenau, Criciúma e Chapecó, entre outras. O próprio hiato entre o início dos trabalhos em Florianópolis na comparação com as demais cidades mostra que as audiências de custódia ainda carecem de melhor estrutura de funcionamento em especial no interior catarinense. Para o advogado Silva Cristóvam, que também é professor na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), as diferenças entre o modelo da Capital e demais cidades possuem duas razões principais:

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— Primeiro, o sistema começou em Florianópolis, então tem um pouco mais de tempo, e isso torna mais viável aparar arestas e resolver problemas. Segundo, na Capital temos condições menos precárias de infraestrutura e até de pessoal, porque nas audiências de custódia, além do juiz, existe todo um aparato, desde a assistência até a polícia, o MP e a Defensoria Pública. Tem toda uma logística que muitas comarcas ainda estão longe de atingir, sem falar também da questão econômica — aponta o professor, ponderando que na Capital essa “universalização também poderia ser mais efetiva”.

Em Florianópolis, há uma estrutura única, dividida entre a Unidade de Apuração do Crime Organizado e a Vara do Tribunal do Júri, que cuida das audiências de custódia, com juízes se revezando na condução dos trabalhos e equipes de assistentes no levantamento e armazenamento das informações. Na comarca da cidade, um servidor do Tribunal, chefe de cartório da sessão foi quem teve a iniciativa de reunir os dados das audiências em uma planilha de Excel. Por isso os dados são mais completos do que a informação do CNJ.

Já em municípios como Joinville, por exemplo, a mais populosa do Estado, e no Sul e Oeste catarinense, importantes regiões, as audiências de custódia são feitas em regime de plantão, com juízes e equipes diferentes diariamente. Assim, não foi possível levantar a quantidade de relatos de violência policial nas prisões em flagrante nas comarcas do interior catarinense, já que esses dados muitas vezes não são juntados às estatísticas nem contabilizados pelo aparato estatal.

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Além das dificuldades estruturais e até econômicas para ampliar a ferramenta para outras comarcas importantes, exemplo de Balneário Camboriú — onde há solicitações do meio jurídico —, a desembargadora Cinthia Schaefer cita a resistência às audiências de custódia por parte de setores da própria magistratura, bem como setores policiais e do Ministério Público. Há dois anos coordenando o grupo de monitoramento do TJSC, a magistrada diz considerar os primeiros dois anos da medida no Estado como “positivos”. Apesar disso, destaca, gostaria de ter a oportunidade de expandir a ferramenta por outros recantos catarinenses.

— Infelizmente, não foi possível, por falta de estrutura nossa, do Deap e da própria Polícia Civil. Mas, acredito, que a gente está conseguindo, devagarinho, cumprir essa determinação do Supremo Tribunal Federal (STF) dentro do prazo exigido, ainda — explica, para dizer que nos próximos anos outras comarcas do Estado devem ser beneficiadas com as audiências de custódia.

Uso de algemas em presos ocorre em mais de 90% dos casos

Em fevereiro deste ano, pesquisadores do Fórum Brasileiro de Segurança Pública estiveram em algumas capitais do Brasil a pedido do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para fazer um levantamento qualitativo sobre as audiências de custódia. Em Florianópolis, a equipe permaneceu somente uma semana, tendo a possibilidade de observar 45 audiências.

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Um dado que chamou a atenção dos pesquisadores foi que ao contrário do que determina resoluções CNJ e do STF, que dizem só ser lícito o uso de algemas nos presos “em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia”, em Florianópolis, assim como na maioria das cidades pesquisadas, é comum a utilização em audiências.

Alguns presos eram algemados nas mãos e também pelos tornozelos. Em 93% dos casos, os acusados permaneceram algemados durante a audiência sem qualquer justificativa para tanto.

Com menor frequência, policiais militares também se faziam presentes – o que também não é recomendado pelo CNJ. Para os pesquisadores, foi possível notar que o ambiente se torna, por vezes, hostil à denúncia de violência policial, por conta da presença desses agentes.

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A porta da sala de audiências permanecia sempre aberta, outro fator em desacordo com as diretrizes do conselho. Mesmo com essas considerações, o sociólogo Rodrigo de Azevedo, membro do Fórum, entende que na apuração de casos de abuso de autoridade os magistrados da Capital têm cumprido com o que pede o CNJ.

— No que se refere à apuração de casos de violência e maus tratos no momento da prisão foi observado se a magistrada, no momento da audiência, questionava o preso sobre possíveis abusos. Em 93,3% dos casos foi perguntado explicitamente ao acusado se havia sido agredido ou sofrido qualquer violência, ou seja, em 42 dos 45 casos acompanhados. Assim, Florianópolis, junto com Palmas e Porto Alegre, são as capitais em que mais foram observadas perguntas explícitas sobre casos de violência por parte de agentes estatais — revela Azevedo, que também é professor da PUC do Rio Grande do Sul.

A desembargadora Cinthia Schaefer, do TJ/SC, reconhece que a utilização de algemas nos presos ocorre com frequência nas audiências da Capital. Ela admite que o ideal seria não usar na maioria das audiências de custódia, mas pondera que devido ao fato de “Santa Catarina ser um estado faccionado”, de o Fórum da Capital estar em uma “região de grande concentração de pessoas”, em horários de grande movimento e com muitos presos que pertencem a facções criminosas, esse somatório leva ao elevado índice de uso de algemas diante dos juízes.

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— Pela própria estrutura que temos no fórum, não permite que o preso fique solto, por uma possibilidade de fuga. Talvez nem tanto uma situação de perigo ao magistrado e servidor, mas como o horário é de movimento, muita gente circulando, a que se tomar uma cautela grande antes de acontecer uma tragédia, de um preso pegar alguém de refém, desarmar alguém, enfim — reflete a magistrada.

Contraponto

A reportagem encaminhou questionamentos à assessoria de comunicação do Comando da PMSC. Como resposta, a corporação disse não se manifestaria sobre a “pauta”.