Marielle nasceu Francisco, do pai, o carioca Antônio Francisco da Silva Neto. Mas escolheu o Franco, de franqueza, talvez inspirada na mãe, a nordestina Marinete Silva, paraibana de João em Pessoa.

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– A gente nem sabia dessa ideia dela. Quando vimos estava escrito na carteira de identidade. A abreviatura já era sinal do ímpeto, da coragem e da ousadia que marcaram a sua breve vida – conta Antônio, o pai, sentado no sofá da sala do apartamento, no bairro Bonsucesso, Zona Norte do Rio de Janeiro.

Foi ali que Antônio e Marinete, 67 anos, os pais da vereadora Marielle Franco (PSOL-RJ), executada na noite de 14 de março do ano passado, conversaram com a reportagem da NSC. Cercados de fotografias e imersos nas lembranças da filha, eles falaram da tristeza da perda, da surpreendente repercussão do crime no mundo e da expectativa sobre o anúncio de quem matou, a mando de quem e os motivos de terem deformado com quatro tiros o lindo rosto de Marielle. A perícia apontou 13 disparos contra o carro, nove acertaram a lataria e quatro atravessaram o vidro e atingiram a cabeça da vereadora que estava sentada no banco de trás.

Precisamos saber quem mandou matar, quem matou e qual o motivo de terem apagado o lindo sorriso de nossa filha Antônio e Marinete, pais de Marielle

– Apagaram o sorriso dela, mas não o nosso amor e o amor de tanta gente por ela. Marielle virou uma marca para quem busca justiça, seja no Rio de Janeiro, no Brasil e até em outros países – atesta Antônio.

Nesta quinta-feira (14), o evento Amanhecer Marielle ocupará diferentes espaços do Rio de Janeiro. Por um desejo de Marinete – católica convicta que após a morte da filha chegou a receber um telefonema do Papa Francisco em sinal de conforto –, uma missa foi celebrada às 10h na igreja da Candelária, Centro do Rio.

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O ato religioso é estendido a outras mães que também tiveram filhos assassinados, inclusive a do motorista Anderson Gomes, 39 anos. A assessora Fernanda Chaves estava com eles, mas não foi ferida com gravidade. Foi atingida por estilhaços. Por questões de segurança, ela precisou deixar o país por um tempo. Hoje se encontra em lugar não revelado.

– Eu queria que quem lesse esta reportagem pensasse numa coisa: para as famílias, as pessoas que morrem assassinadas, como ocorreu com nossa filha, não são apenas estatísticas. Cada uma tem o seu valor e a sua história. Como alguém vai chegar e dar fim a isso? Quem manda? Quem decide? Qual o motivo de tirarem a vida de uma pessoa de uma forma tão brutal? – questiona Antônio.

Vidas iguais a de muitos brasileiros

São 18 horas de 27 de fevereiro, quarta-feira. Com uma bolsa pendurada no ombro, pastas e agenda na mão, Marinete Silva entra no táxi estacionado em frente à Igreja Santo Afonso, na Tijuca, para a casa da família, em Bonsucesso. Foi ali o ponto de encontro marcado com o DC.

– Achei melhor a gente conversar lá em casa. Assim, o Antônio também pode participar. Ele não poderia sair, pois tem que receber a nossa netinha, Mariah, três anos, quando chega da escola – diz a advogada previdenciária que naquele dia saiu de casa às 8h para explicar a clientes sobre mudanças na aposentadoria, previstas na Reforma da Previdência.

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Mariah é filha de Anielle Franco, 36 anos, a outra filha do casal, e que deu a Marielle uma das maiores alegrias da vida: o convite para ser madrinha da criança. A relação cheia de amor entre as duas tornou mais dolorosa a explicação de que Marielle não iria mais brincar com ela, levar na sorveteria, comprar presentes. Mas que estaria sempre próxima.

Num momento da entrevista, enquanto ela brincava de fazer bolinhas de sabão com o avô, Mariah demonstrou ter entendido o que os adultos contaram: viu o gravador sobre o sofá, chegou pertinho e repetiu o que costuma ver e fazer em eventos sobre a memória da vereadora:

– Marielle presente! Marielle presente!

A frase estampada em muros, grafites, camisetas, placas e sambas-enredos do Carnaval 2019 – como da campeã Estação Primeira de Mangueira – também está pendurada na porta da casa da família. A impressão em madeira foi presente de um ex-aluno de catequese de Marielle.

– Nossa família sempre foi muito religiosa. Marielle foi batizada, fez primeira comunhão e crismada. Foi inclusive um padre amigo que nos falou da notícia do crime – conta a mãe Marinete.

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É justamente na fé em Deus que Marinete, que frequenta a missa todos os dias, se agarra:

– Eu ainda estaria por aqui, mas sabe-se lá de que jeito. Quem sabe doente, com depressão, querendo morrer. Mas não tem como parar, temos que ajudar Anielle a criar a filha e apoiar Luyara, 19 anos, filha de Marielle, que depois da morte voltou a morar com a gente. É a continuidade, sabe?

Um dia antes do crime, mãe, filha e motorista circularam de carro na cidade

Marinete esteve com Marielle um dia antes do crime. Aliás, com Anderson Gomes, seu motorista, também. Ela tinha ido à Câmara de Vereadores, viu a filha no plenário e foi ao gabinete fazer um lanche, enquanto a parlamentar atendia as pessoas. Depois, saíram os três rondando de carro até achar um colírio numa farmácia, pois Anielle, Luyara e Mariah estavam com conjuntivite. Pelo que a polícia divulgou, os matadores devem ter acompanhado todo o giro.

Na noite seguinte, o casal estava em casa quando o padre amigo telefonou perguntando se estava tudo bem com Marielle. Era por volta das 21h30min e ele tinha visto notícias sobre uma emboscada. Marinete respondeu que devia ser boataria da internet. Mas começaram a chegar muitas mensagens e várias pessoas telefonaram. Era o começo de uma noite sem fim.

– Tentamos falar com Marielle, mas o celular não atendia. Foi quando eu vim aqui para a sala e liguei a televisão. Foi desesperador: Antônio passou mal, Luyara se jogou no chão, a casa encheu de conhecidos e aí tivemos que lidar com toda aquela situação.

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Para os pais, a coragem foi uma das maiores marcas de Marielle. A entrada na política inicialmente assustou a família. Ainda que compreensível para alguém tão comprometido e que em 10 anos trabalhava na defesa dos direitos humanos de mulheres, de jovens negros, de pessoas LGBTI.

No exercício parlamentar surgiram outras preocupações. Marielle se posicionava contra execuções extrajudiciais e violações de direitos cometidas por policiais. Era relatora da Comissão Representativa da Câmara de Vereadores, criada para monitorar a intervenção federal na área da segurança do Rio de Janeiro, decretada em 16 de fevereiro de 2018.

Casamento homoafetivo também foi motivo de luta dentro e fora de casa

No campo pessoal Marielle também rompeu com conceitos fortes para uma família católica: engravidou solteira aos 19 anos. Casou-se, separou-se e anos depois assumiu o relacionamento homoafetivo com a arquiteta Monica Benício. A relação da companheira com a família de Marielle foi se ajustando aos poucos.

Talvez o Carnaval – festa que para Marielle significava espaço de resistência popular – tenha levantado uma cortina: enquanto a viúva Monica Benício, recentemente filiada ao PSOL, desfilava pela Mangueira, que seria campeã, na homenagem que cita Marielle no samba-enredo; o pai, a irmã e a filha estavam na Unidos de Vila Isabel.

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Dias antes, na entrevista à reportagem, Antônio antecipou:

– A escola do Rio de Janeiro que procurou a família, de fato, foi a Vila Isabel.

Mônica enquanto também ativista de direitos humanos participa de muitas homenagens e eventos no país e exterior. Entre o final de fevereiro e começo de março esteve em Genebra, na Suiça. Voltou para o Brasil e continuou na militância.

– O momento é de bastante tristeza, mesmo assim tenho seguido na luta, inclusive com participação em blocos de Carnaval para pedir justiça por Marielle. Todos os espaços são importantes.

No ato em homenagem ao Dia Internacional da Mulher, dia 8, no Centro do Rio, Monica discursou:

– Não existe democracia no Brasil enquanto o assassinato de Marielle não for esclarecido.

A morte de Marielle impactou muito a vida de todos e muito ainda pode acontecer. Inclusive no campo político, já que Anielle tem sido convidada por partidos de esquerda para dar continuidade ao legado da irmã. Durante a apuração desta reportagem, ouvimos um recado dela a respeito das homenagens de 14 de março:

– Não é fazer da morte um palanque, mas fazer da data uma linda homenagem.

Anielle, que fisicamente parece bastante com Marielle, sabe o que significa ser irmã de uma ativista com a trajetória da vereadora assassinada. Às vésperas das eleições, em outubro, foi hostilizada nas ruas. Não precisou vestir camiseta ou usar bandeira que a identificassem com algum partido. Foi intimidada apenas por falar em nome da família.

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Se por um lado recebeu solidariedade e muitos abraços, por outro, xingamentos. Um dia estava no shopping com a filha no colo quando um homem se aproximou e a atacou verbalmente. Salivava por um ódio sem explicação. Anielle teve medo, sentimento que se estendeu a Marinete também.

– A gente já tinha perdido Marielle. Era terrível pensar que Anielle e sua filhinha fossem vítimas de mais violência – afirma Marinete.

Dor não abala gentileza e lucidez dos pais diante da repercussão da tragédia

Apesar de toda a amargura vivida, a simplicidade permanece na casa da família Silva. Marinete continua servindo limonada e biscoitinhos nordestinos para as visitas. Ao final de um encontro com jornalistas, ela sempre agradece pelo interesse da entrevista.

Antônio reconhece o papel importante da imprensa, "desde que não distorça os fatos e transforme a vítima em bandido, como chega a acontecer, inclusive como tentaram com nossa filha".

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– Eu vou dizer para você o que disse para o programa Fantástico, da Rede Globo, dias depois que mataram nossa filha: os assassinos sabiam que Marielle, aquela menina nascida na Maré, que estudou, se esforçou, trabalhou muito e defendia o direito das pessoas desprotegidas, iria muito longe. Marielle iria conquistar o nosso país, pode escrever.