Numa frase curta e instigante, como se fora um tuíte inspirado ou um haicai, o presidente do Uruguai, José Mujica, criticou ao mesmo tempo o governo, a oposição e todo o complexo contexto político venezuelano.
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– Para pensar igual, não é preciso uma democracia – filosofou Mujica.
Com essas oito palavras, o leitor atento reflete sobre o exercício do voto, o significado da democracia e a conflituosa situação venezuelana.
E qual é essa situação? Um ano atrás, em 5 de março de 2013, morria o então presidente Hugo Chávez e se abria curta campanha para a eleição, em 14 de abril, na qual o chavista Nicolás Maduro derrotou o opositor moderado Henrique Capriles por apenas 1,5 ponto percentual. Já naquele dia 14, havia detalhes que impactavam quem viveu o processo eleitoral em Caracas, como o repórter que escreve este texto, enviado especial de ZH. Algumas constatações: Maduro discursava na TV pública tendo na parte de baixo da tela os dizeres “candidato da pátria” (o que seria o adversário?!); militares tomavam conta das ruas; o controle das urnas era feito de perto por uma brigada bolivariana, criada pelo chavismo. Também estava claro que a votação era livre, que os opositores se manifestavam sem entraves e que jornais críticos, enfim, podiam criticar.
De lá para cá, a situação socioeconômica mudou, e os aspectos autoritários do governo se acentuaram. A segurança pública saiu de controle, com Caracas chegando ao triplo dos homicídios registrados em São Paulo e a Venezuela pranteando 65 mortes violentas diariamente. A inflação saltou de 29,4% anuais para 56,3% anuais. O desabastecimento de bens da cesta básica foi de 21% para 28% – incluindo açúcar, farinha, óleo, pão e papel higiênico! Em novembro, o Legislativo unicameral aprovou a chamada Lei Habilitante, que dá poderes especiais ao presidente pelo período de 12 meses. Os jornais impressos, que precisam de autorização para adquirir divisas e comprar o papel do dia a dia, não a obtiveram. Alguns deles fecharam, e outros passaram a circular com menos páginas e suplementos para ter uma sobrevida. O governo acusou os empresários de esconder mercadorias para provocar o desabastecimento e colocar a classe média contra Maduro. Limitou-lhes, por decreto, a margem de lucro a 30%. Também reclamou das intenções assumidamente golpistas de parte da oposição, representada pelo líder Leopoldo López.
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Isso posto, a frase de Mujica permite, então, indagar: é isso uma democracia? O cientista político Marcelo Coutinho sustenta ser um erro reduzir a democracia a um sistema que apenas realiza eleições. Argumenta que até na totalitária União Soviética havia voto e um sistema eleitoral do qual ?todos participavam?:
– A redução da democracia a apenas um dos seus elementos não passa de um truque para grupos autoritários se legitimarem no poder. Quem recorre a esse artifício sabe que está ludibriando as pessoas e confundindo a opinião pública – diz.
Coutinho também define o Judiciário venezuelano como chavista. E argumenta:
– O que distingue a democracia é o voto livre, para o qual se faz necessário garantir a liberdade e a autonomia da imprensa e do Judiciário e direitos de manifestação e de organização sem riscos.
Feito o preâmbulo, Coutinho conclui:
– A Venezuela deixou de ser uma democracia quando Hugo Chávez morreu.
Outro cientista político, Igor Fuser, discorda do colega:
– A democracia é exercida na Venezuela de várias maneiras. Em nenhum outro país do mundo, ocorreram tantas eleições, plebiscitos e referendos como na Venezuela. Somente nos últimos 15 meses, ocorreram quatro eleições: duas presidenciais (com as vitórias de Chávez e de Maduro), de governadores e de prefeitos – diz ele.
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Mais um aspecto estabelecido por Fuser para caracterizar a face democrática do regime venezuelano é o que ele define como a “ampla possibilidade de escolha” nas eleições.
– Não acontece na Venezuela o fenômeno do esvaziamento da democracia representativa que se verifica na Europa, nos EUA e mesmo no Brasil. Em muitos países, eleições se resumem à escolha entre opções praticamente idênticas. Vem daí a frustração dos eleitores que não se sentem representados pelos eleitos. Na Venezuela, cada eleição oferece a possibilidade de influir efetivamente na vida nacional.
Maduro se ampara na realização de eleições para responder a quem o acusa de antidemocrático. Faz um mês, porém, que manifestações de opositores pelas ruas venezuelanas fizeram aflorar o lado mais repressivo de seu governo. Houve prisões e pelo menos 20 mortos em confrontos. O historiador argentino Carlos Malamud, especialista em América Latina do espanhol Real Instituto Elcano de Estudos Internacionais e Estratégicos, põe outro elemento no debate: como o governo venezuelano diz representar a chamada “revolução bolivariana”, a oposição seria adversária desse regime que distribui renda e diminui a desigualdade social.
– Como houve uma revolução, segundo o discurso bolivariano, somente o governo, encarnação da vontade popular, pode ganhar eleições. Qualquer pretensão opositora de afastar o chavismo nas urnas é denunciada como desestabilizadora e apresentada como potencial golpe. A polarização é uma das armas favoritas do populismo latino-americano.
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Maduro parece dar razão a Malamud. Em discurso, no dia 18 de fevereiro, para petroleiros, disse:
– Na Venezuela, não há três, quatro ou cinco opções. Só há dois modelos que se enfrentam. Um é o dos que sabotam a economia, que tiram o alimento do povo e manipulam os jovens. O outro é o dos que queremos trabalhar, dos patriotas.
O fato é que a figura de Chávez e o legado que ele deixou estão presentes em cada esquina de Caracas, com rosto e olhos pintados nos muros e prédios da capital venezuelana. A figura do líder bolivariano, que governou o país entre 1999 e 2013, é onipresente. Na última quarta-feira, Maduro organizou um desfile cívico-militar para lembrar a figura do comandante como a de um prócer. Analistas, aliás, dizem que o atual presidente foi o escolhido por Chávez para sucedê-lo justamente porque tem mais apego ao legado chavista do que a sua própria figura pública. Sendo assim, é um seguidor obediente, que, em compensação, apela mais para medidas autoritárias em razão do escasso carisma. Precisa disso para se impor.
Se Chávez não legou a Maduro carisma e popularidade, deixou para seu sucessor outras heranças nem um pouco positivas. A Venezuela tem as maiores reservas petrolíferas do mundo e depende desse petróleo para manter as missões sociais com que garante eleitorado chavista cativo. O problema é que vive uma seca de divisas para importações, e o consumo interno depende de uma deficiente produção local, que gera escassez. Diz o cientista Ángel Oropeza, da Universidade Católica Andrés Bello:
– Chávez agia como um dique de contenção. O modelo dava sinais de problemas, mas, com seu carisma e seu discurso, Chávez funcionava como um salva-vidas. Sem sua presença, parece que os problemas aparecem com mais força.
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Uma contenção também dentro do chavismo. Quando se fala em golpe, analistas não se limitam a indicar a fonte da suspeita na oposição, cuja vertente ligada a López não tem pruridos ao falar que deseja derrubar Maduro – ao contrário de Capriles, que insiste na via eleitoral. O presidente do Legislativo, Diosdado Cabello, é rival de Maduro entre os chavistas. Militar e de personalidade forte, Cabello lidera um grupo castrense que, possivelmente para se manter fiel ao governo, ganhou espaço no aparato estatal. Tem canal de TV, banco e outros setores em suas mãos, até mesmo na área financeira.
Enfim, Chávez vive, dizem seus seguidores. E a democracia venezuelana sobrevive. Mas há controvérsias.