A madrugada de 6 de setembro de 2023 dificilmente sairá da memória dos moradores do Monte Cristo, na região continental de Florianópolis. Há um ano, o reservatório da Casan da Rua Luís Carlos Prestes rompeu e mais de 2 milhões de litros d’água inundaram as ruas e deixaram rastros de destruição. Casas, lojas e carros foram atingidos. Atualmente, a letra X em vermelho indica marcas da tragédia nas paredes da comunidade do Sapé. 

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Maria do Carmo Duarte, de 84 anos, mora na Servidão Jorge Luís Arruda Moreira Rocha e acordou com o “barulhão”, que a fez pensar que fosse um avião passando por perto. Ao levantar, ouviu som de água, mas percebeu que não estava chovendo. Afinal, que estrondo era aquele? 

— Quando abri a porta, a água me empurrou de volta. Aí eu comecei a gritar e pedir socorro — lembra. 

A aposentada estava em casa com a bisneta Daniela, de 13 anos, e a filha Rosilane, de 60 anos, que sofreu um AVC em 2004 e tem a fala e a mobilidade comprometida. Quando viu a água tomando conta de tudo, Maria do Carmo diz que não teve tempo para sentir medo. Ela agarrou-se com Deus e pensou: “eu preciso tirar a gente daqui”. 

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Foi quando levou Rosilene, Daniela e os dois cães da família para cima da cama com o intuito de tirá-los pela janela estreita de seu quarto, já que era o único cômodo que dava acesso à parte de trás do imóvel, área que ficou menos alagada. 

— A água era demais [dentro do quarto], e a cama se mexia muito. Com dificuldade, fui empurrando elas pra fora pela janela e também saí. Fomos levadas até a rua de cima nas costas de um policial que veio nos socorrer — relata a idosa. 

A água chegou a um metro de altura e Maria do Carmo perdeu tudo que tinha. Em uma das gavetas de um armário recém comprado, ela guarda as fotos que mostram móveis e eletrodomésticos quebrados, espalhados pelo chão e cobertos de lama. 

Alguns itens, como a máquina de lavar, tinham valor financeiro. Mas outros, como o relógio da família que ficava na parede e as fotos dos netos que perdeu contato, valor simbólico. O fato é que o que guardava dentro da casinha de três cômodos que ergueu com muito suor fazia parte de sua história de mais de oito décadas. As imagens a fazem reviver a tragédia e dão a noção de que nem tudo tem preço. “Gente velha guarda muita coisa, minha filha”, diz a idosa. 

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O que a indigna é que, para indenização dos itens perdidos, a Casan exige nota fiscal de tudo. 

— Eu perdi muita coisa que foi levada pela água que não foi contabilizada. Porque como é que vou dar nota de tudo que perdi? Como é que vou tirar nota das coisas? O advogado cobra que precisa ter nota. Mas como, me explica? — questiona. 

Um ano depois, Maria do Carmo ainda se reconstrói. A maioria das coisas dentro de casa conseguiu recuperar, seja com os valores que foram ressarcidos ou com doações. No entanto, o psicológico segue abalado.  

— Agora quando vejo água já fico atormentada de medo. A nossa sorte ainda é que Deus mandou a água lá pela rua de cima, se vem por essa nossa rua da frente, onde as casas não têm segurança nenhuma pra aguentar [a pressão da água], nós tínhamos morrido tudo — diz. 

Veja como está o local um ano depois

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“Foi quase tudo para o lixo”, diz moradora 

A dona de casa Luiza Helena Ribeira Costa, de 64 anos, também acordou no susto, às 2h da madrugada, com a casa já tomada pela correnteza. A água, de forma devastadora, arrancou a porta de trás do imóvel e arrastou tudo o que estava no chão. 

Ela conseguiu salvar apenas a TV, o micro-ondas e a cama de madeira. O restante, incluindo a geladeira, não tiveram mais funcionalidade. As paredes precisaram ser pintadas e os pisos repostos, já que estouraram com a pressão da água. 

— Primeiro, achei que tinha sido o mar que tinha invadido, mas abri a porta e vi a água entrando rápido e devorando tudo que tinha na frente. Arrastou carros da rua de cima para baixo. Foi quase tudo para o lixo. A Casan deu alguma coisa que achou que era válido, mas a gente sempre acaba gastando mais. Vai aparecendo prejuízo depois, e sai do nosso bolso — relata. 

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Além das perdas em casa, a saúde mental da filha também ficou abalada e, segundo dona Luíza, manchas começaram a aparecer no corpo da jovem, de 30 anos. Bastante religiosa, a idosa agradece pela vida e se compadece com os vizinhos que sofreram danos mais graves. 

 — Eu ainda salvei algumas coisas, tive cama para dormir. Tive que limpar, reformar, é claro, mas teve gente que não sobrou nada. 

“Uma tragédia anunciada” 

Sebastião Carlos Lemos, de 47 anos, estava em casa, no bairro Estreito, quando foi acordado pelo toque do celular. Eram moradores do Monte Cristo que o alertavam sobre o rompimento do reservatório da Casan. Rapidamente, ele pegou uma roupa e foi para a serralheria que tem na Rua Prof. Marieta Barbosa Ribeiro. 

Quando chegou ao endereço, viu que nem as paredes tinham ficado de pé. 

— O cenário era de destruição. Aqui, dentro da minha serralheria, tinha 25 carros, tudo que a água arrastou do estacionamento da lavação [da rua de cima]. Tinha carro empilhado até em cima do telhado — lembra o proprietário. 

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Tião, como é conhecido no bairro, diz que a sensação inicial foi de desespero, principalmente porque tinha um cachorro e um amigo que abrigava dentro do imóvel. Por sorte, eles foram resgatados com vida porque o muro quebrou e a água os arrastou para um terreno de baixo. 

O prejuízo, segundo ele, foi de R$ 100 mil só em máquinas, fora a estrutura, que é de responsabilidade do locatário de quem aluga o imóvel. Foram cinco meses parado até conseguir reerguer o local. 

Mesmo em meio às perdas, a esposa de Tião, a contadora Débora Morais, deixou o filho de 20 anos, que tem paralisia e deficiência visual na casa da avó, e, por três meses, largou o trabalho e praticamente mudou-se para a comunidade a fim de auxiliar os moradores. 

Ela os acompanhava em reuniões com a Casan, com advogados e os orientava como podia para conseguirem as indenizações. 

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— Muitos não sabem ler, não sabem escrever e não têm muito entendimento sobre seus direitos. Por mais que falem claro [o pessoal da Casan], eles têm dificuldade de entender, por isso os acompanhava quando precisavam — conta. 

Passado o susto e com a maioria das indenizações já liberadas, para Tião, a sensação é de revolta. 

— Isso é uma coisa que poderia ter sido evitada, era uma tragédia anunciada que todo mundo sabia que ia acontecer. Tinha relatos de vazamento por parte dos moradores, o pessoal falava que iria romper e não acreditaram. E dale remendo, e dale remendo, e dale remendo e nada de consertar de fato. Levaram foi sorte ainda que não matou ninguém — desabafa o serralheiro. 

Defensoria pública recomenda revisão de valores de indenização 

Em agosto deste ano, a Defensoria Pública de Santa Catarina fez uma recomendação à Casan para que contrate uma assessoria técnica independente que defina os reais prejuízos às famílias e avalie a metodologia de pagamentos utilizada. 

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No documento, o órgão cita ter feito uma abordagem com integrantes de 80 famílias atingidas, que representa 30% do total, em que 91,8% dos entrevistados se mostraram insatisfeitos com os valores pagos, que somam R$ 9 milhões, já que não conseguiram comprovar todos os itens que tinham. 

A Casan tem prazo de 30 dias para enviar uma resposta. O presidente da companhia, Edson Moritz, em entrevista à NSC TV, destacou que todas as indenizações foram pagas às 286 pessoas afetadas no prazo de três meses após o ocorrido e confirmou que, dessas, 20 entraram na justiça pedindo reavaliação do valor. Com relação à recomendação do órgão público, Moritz informa que dará um retorno no prazo determinado. 

— A gente entende que é óbvio que as pessoas não vão ficar satisfeitas, é da natureza das pessoas. O levantamento feito pela defensoria pegou 30% das pessoas e disse que 90% está insatisfeito. Se eu fosse perguntado também diria estar insatisfeito. São direitos da defensoria [fazer o questionamento], está aqui na procuradoria e nós vamos responder — diz. 

No início de setembro, a Casan e o Ministério Público de Santa Catarina (MPSC) assinaram um termo de ajustamento de conduta que prevê a criação de mecanismos para a prevenção e o ressarcimento de possíveis danos, a fim de que se tenha um plano para ser aplicado em casos de acidentes.

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Reservatório apresentou rachaduras no 1° mês de uso

O reservatório do Monte Cristo teve as obras iniciadas em 2017 e foi entregue em março de 2023. Segundo a Casan, o depósito triplicaria a capacidade de armazenamento de água tratada na região, beneficiando, assim, bairros continentais de Florianópolis e bairros de São José. 

A construção teve investimento de R$ 6,6 milhões, valor pago em parceria com a empresa e a Caixa Econômica Federal. No entanto, já no primeiro mês de funcionamento, moradores passaram a perceber rachaduras na estrutura. Inclusive, em abril, um vídeo gravado no local mostra funcionários da companhia fechando um buraco na parede com rejunte. 

Uma troca de e-mails divulgada pela NSC TV dias após o rompimento apontou, ainda, que representantes da Casan e da construtora estavam cientes dos danos na estrutura.

Para o presidente da Casan, Edson Moritz, o fato serviu como aprendizado e fez com que a empresa reavaliasse processos, a estrutura organizacional, as equipes de trabalho e até os materiais utilizados em reservatórios de todo Estado. Para ele, todo processo poderia ter sido diferente a fim de prevenir a tragédia. 

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— Desde o primeiro momento, analisamos todos os reservatórios no Estado inteiro. Ficamos mais rigorosos no projeto, no acompanhamento de projeto e, também, nos acautelamos mudando a tecnologia. Nós também centralizamos as denúncias e temos um grupo que analisa este tipo de atividade. [Além disso] treinamos pessoas para este tipo de demanda. Então é um conjunto de fatores que foram aprimorados — destaca. 

A estrutura do reservatório ainda está no local e serve como um lembrete diário do desastre que assolou toda uma comunidade. Moritz diz que a estrutura precisou passar por perícia e outros procedimentos, por isso ainda está de pé, mas informa que a construção já tem um destino: será doada ao governo estadual e disponibilizada à Secretaria de Assistência Social (SAS).

Três viram réus por má execução da obra 

No final de agosto, dois sócios proprietários da Gomes & Gomes Ltda., empresa que construiu o reservatório, e um dos engenheiros da Casan, responsável pela fiscalização da obra, se tornaram réus em ação penal ajuizada pelo Ministério Público catarinense. Eles são acusados por dois crimes: o de causar inundações e o de causar desabamento ou desmoronamento. 

Além da aplicação das penas privativas de liberdade previstas no Código Penal — até seis anos no caso de inundação e até quatro anos no caso de desmoronamento — o MP requer na ação o pagamento de R$ 19,5 milhões para a reparação dos danos causados à comunidade e serviços públicos instalados no local. O caso ainda tramita na Justiça.

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Outros dois engenheiros da Casan que também atuaram na fiscalização da obra não foram denunciados em razão de terem aceitado acordo de não persecução penal proposto pela promotoria. Para ter direito ao benefício, o investigado deve confessar os crimes e atender a pressupostos legais, como não ter antecedentes criminais e ser acusado de crime sem violência ou grave ameaça, com pena mínima prevista inferior a quatro anos. 

O que motivou o rompimento do reservatório, que foi entregue pela construtora menos de dois anos antes da tragédia, foi a má execução da obra e falta de fiscalização adequada, conforme concluiu o MP e o TCE, responsáveis pela apuração do caso. A causa foi apontada por quatro laudos técnicos apresentados pelo Centro Operacional Técnico do MPSC, pelo Tribunal de Contas, Polícia Científica do Estado e, também, pela auditoria da própria Casan.  

As perícias chegaram à conclusão que a empresa executou a obra em desconformidade com o projeto estrutural, o que foi determinante para o colapso da estrutura. Isso porque ficou constatado que a construtora utilizou ferros das armaduras dos pilares de apoio em desacordo com a indicação do projeto original (eles tinham 5 milímetros de diâmetro, enquanto o projeto previa o dobro do tamanho, isto é, 10 milímetros de diâmetro).

Internamente, tramita na Casan um processo administrativo disciplinar (PAD) que apura as possíveis responsabilidades pelo rompimento por parte de funcionários da companhia.

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Relembre o caso

Era por volta das 2h da madrugada de 6 de setembro de 2023 quando a comunidade do bairro Monte Cristo, na região continental de Florianópolis, foi surpreendida pelo rompimento de um reservatório da Casan que destruiu casas, desabrigou famílias e deteriorou veículos. 

O equivalente a 2 milhões de litros de água que foram despejados sobre a comunidade com o rompimento do reservatório resultaram em significativos prejuízos materiais e morais. Duas pessoas ficaram feridas e 550 foram impactadas, no total.

Na ocasião, a Defesa Civil cadastrou 286 famílias com danos em casa ou no veículo. À época, foram vistoriadas 163 edificações, destas, quatro foram interditadas, duas liberadas com restrição, quatro condenadas e 155 liberadas. Os moradores das residências liberadas, em sua maioria, perderam móveis, eletrodomésticos e pertences pessoais. Em decorrência do desastre, 75 veículos foram avariados. 

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