A vida de Alcina Júlia da Conceição e a história do Beco da Carioca se misturam tanto que a reinauguração da fonte ocorreu na data do centenário da sua última lavadeira. Neta de escravos, dona Alcina é a história viva de São José. No seu lavatório, além de trabalho, havia cantoria, risadas, fofoca e amizade. Foi nele que esta senhora nascida em 27 de fevereiro de 1918 viu uma vila colonial se transformar na cidade grande de hoje.
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Negra de cabelos totalmente brancos e bem penteados, dona Alcina hoje anda curvadinha e já não enxerga mais.
— Não vê mais com os olhos, mas sim com o coração — apressa-se em explicar um dos filhos, Fernando Luiz da Conceição, de 65 anos.
Dona Alcina é o retrato da miscigenação brasileira: o pai é português e, a mãe, nascida do ventre livre de uma escrava. Teve seis filhos, 21 netos e mais de 40 bisnetos. Ri com facilidade e demonstra uma alegria de dar inveja. É magra e tem a saúde e a pressão em dia. Prefere os chás aos remédios.
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Carrega a pele marcada pela idade e as mãos calejadas pelo trabalho pesado que praticou durante meio século. Muito lúcida, tem a memória intacta dos tempos de lavação com o extinto Sabão Joinville no Beco da Carioca.
— Nós começávamos na segunda-feira e íamos até a sexta fervendo roupa, corando, torcendo. Quando ficava tudo seco, nós íamos entregar para os donos. Era muito bom na Carioca, junto com as amigas. Todo mundo lavava, vivia de alegria, todas pobres, umas choravam, outras viviam clamando que a gente tinha que ir pra praia tirar berbigão.
Além da lida no tanque, as lavadeiras também precisavam ir na floresta catar lenha. Tarefa um tanto perigosa, lembra com todos os detalhes a valente anciã.
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— Tinha que arrumar lenha para ferver a água. E um dia eu levei no ombro e tinha uma cobra, uma jararaca. Cheguei na Carioca e joguei a lenha no chão e elas (as lavadeiras) saltaram tudo lá de dentro. Mas eu já estava com um cabo de vassoura na mão e matei a cobra!
Foi nesse cenário que dona Alcina criou os filhos com sacrifício:
— Nem que fosse um pedaço de pão, eu sempre tinha para dar para eles.
E se precisar voltar a trabalhar, a senhora não arrega:
— Tenho dois braços, duas pernas, posso trabalhar, posso esfregar roupa, posso passar.
Evidente que isso não será preciso, já que o filho Fernando mora com a mãe e cuida dela. Ontem, ele ajudou a maquiar e a vestir a matriarca para a inauguração do revitalizado Beco da Carioca. Só que por causa da chuva, o evento acabou acontecendo dentro da Casa de Cultura de São José, para lamento de dona Alcina, que queria voltar ao local onde passou os dias mais felizes da vida.
— Tenho saudades da Carioca. Saudades de tocar no lavador que eu lavava. Hoje era o meu dia. Antes de Deus me chamar, eu quero ir na Carioca botar a mão no lavador que eu lavava. Como era gostoso, querido, a gente lavar, passar, engomar, torcer roupa.
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O novo Beco da Carioca
Em desuso desde os anos 70, o Beco da Carioca faz parte da fundação da própria cidade. Foi a principal fonte de água potável dos josefenses lá nos idos de 1750. Virou um lavadouro público em 1840, com cisterna e torneiras. Nessa época, foram instaladas 14 pedras para bater a sujeira das roupas, trabalho realizado durante muito tempo por lavadeiras, como dona Alcina.
Com o crescimento da cidade, a água da bica ficou poluída, as paredes acumularam limo e o local ficou sem sinalização, sem referências históricas e sem água. Acabou virando destino de usuários de drogas. A fonte histórica sofreu com quase quatro décadas de descaso.
Em abril de 2017, a revitalização do Beco saiu do papel quando a prefeitura de São José ganhou o apoio do Fundo para Reconstituição de Bens Lesados (FRBL), do Ministério Público. O recurso, R$ 149.797,88, é fruto de condenações, multas e acordos judiciais e extrajudiciais. As obras começaram em outubro e foi inauguradas ontem.
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Hoje o local é outro. Foi transformado num parque de observação, com pintura fresca, nova iluminação, sinalização e um deck para receber visitas.