A mãe Silvana Gonçalves da Luz, 42, levou o filho Eduardo, 15, ao setor de emergência do Hospital Universitário (HU) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) às 5h da manhã de ontem. O adolescente estava com fortes dores abdominais e o diagnóstico feito na triagem foi certeiro: terá de operar a apêndice. Mas a entrada do menino no centro cirúrgico do hospital não foi imediata. Mãe e filho tiveram de esperar no corredor pelo atendimento, onde pelo menos outros dez pacientes também aguardavam. Até o início da tarde de ontem, não havia perspectiva para que a operação pudesse ser feita no mesmo dia.

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– Nos mandaram esperar em uma sala minúscula junto de pacientes com todo o tipo de doença porque os leitos estavam todos ocupados e outras cirurgias marcadas tinham prioridade. É complicado isso em uma emergência. Talvez amanhã (hoje) consigamos operar, mas não se sabe – lamenta Silvana, enquanto tentava acalmar o filho, que agonizava mesmo medicado.

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Alternativa de contrato

O que Silvana não sabia é que setores da UFSC discutem alternativas que possam melhorar esse quadro e todo o atendimento prestado no HU ao Estado e a formação oferecida aos alunos da universidade a partir de um novo modelo de gestão. Uma das opções apontadas pelo Governo Federal é a adesão à Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH) – empresa pública de direito privado instituída pelo Ministério da Educação (MEC) para gerir hospitais vinculados às universidades.

Apesar de não deliberativa, acontece hoje, das 8h às 21h, uma consulta pública a fim de medir a opinião da comunidade universitária – estudantes, técnico-administrativos e docentes – acerca do rumo da administração do hospital. Após a votação, os resultados serão apresentados no prazo de 15 dias e, posteriormente, discutidos e avaliados em uma sessão do Conselho Universitário – órgão máximo da universidade que tem o poder de dizer sim ou não à Ebserh.

Efeito dominó: falta de funcionários, fechamento de leitos, diminuição de verbas

Em 2012, cerca de 60 leitos estavam desativados no HU da UFSC. Hoje, são 103. De acordo com a direção do hospital, o principal motivo é a dificuldade na contratação de pessoal, ou seja, não há profissionais para atuarem na estrutura e, por esse motivo, o hospital não atende em sua máxima capacidade. Isso acontece, principalmente, por três motivos: três cargos foram extintos (como o de auxiliar de enfermagem) e não podem ser realizados novos concursos públicos para preenchimento dessas vagas; lentidão na reposição de funcionários aposentados; alto número de profissionais afastados (250 atualmente, segundo a reitoria).

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Ainda assim 153 funcionários são contratados pela Fundação de Amparo à Pesquisa e Extensão Universitária (Fapeu) para tentar amenizar a falta de mão de obra. E é exatamente isso que o MEC deseja por meio da Ebserh: acabar com os funcionários.

– O Governo Federal aponta como único instrumento para contratação de pessoas a adesão à Ebserh, que após a assinatura do contrato, tem um ano para repor os funcionários que estão faltando no HU. Por isso, acreditamos que aderindo à empresa é possível resolver essa questão – acredita o diretor do HU da UFSC, professor Carlos Alberto Justo, o Paraná.

(Foto: Diorgenes Pandini/Agência RBS)

Novos profissionais

A Ebserh, por sua vez, promete a vinda de 800 funcionários para o hospital-escola da UFSC até meados de 2016. O concurso público é mantido no novo modelo de gestão, com a diferença de que os funcionários serão regidos de acordo com a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e não mais por regime jurídico único.

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– Para preencher essa lacuna de atendimento, são necessários 1.050 novos colaboradores no hospital. O pessoal se assusta com a palavra privatização, mas sequer conhece o significado. Atualmente, com leitos fechados, estamos praticamente privatizando a estrutura – garante o coordenador de Apoio Administrativo do HU, Célio José Coelho.

– Trabalhamos com cerca de dois terços da capacidade total, que já é pequena pelo potencial do hospital e pelas demandas de assistência e de estudantes. Não cumprindo as metas do SUS quanto a atendimentos, o repasse para o hospital é menor do que o necessário para suprir as necessidades. Assim, o HU da UFSC tem tido um déficit mensal de cerca de R$ 800 mil – explica a vice-diretora do Centro de Ciências da Saúde da UFSC, professora Isabela Back, que já foi médica no HU.

Reitoria prefere não se posicionar

A vice-reitora da UFSC, professora Lúcia Pacheco, reconhece que o HU deixa de receber cerca de 10% do orçamento repassado pelo Ministério da Saúde, mas prefere deixar a decisão sobre a adoção de um novo modelo de gestão para os membros do Conselho Universitário (CUn).

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– Tudo que foi possível para esclarecer a comunidade sobre a Ebserh e a relação com a universidade e o hospital nós fizemos. Debatemos muito as questões complexas que precisam ser entendidas em uma comissão específica. Mas a decisão só vai ser tomada em uma determinada sessão do CUn, que vai ponderar todos esses aspectos – garante a professora.

Ela também garante que independentemente da resposta da universidade à proposta do MEC, ações terão de ser tomadas.

– Em caso negativo, teremos de aprimorar algumas questões, principalmente aquelas relacionadas à gestão de pessoas, que é o grande problema do hospital. Se houver adesão à Ebserh, teremos de avaliar minuciosamente o contrato firmado entre empresa e hospital – explica.

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Garantias

A presidente em exercício da Ebserh, Jeanne Michel, argumenta que o contrato é único, mas que há especificações a serem garantidas.

– Trata-se de um documento padrão apresentado pela procuradoria-geral federal. O que muda é o anexo, onde é levado em consideração um plano de reestruturação pensada para cada hospital a ser realizado no prazo de dois anos. No caso do HU da UFSC, serão focadas as áreas de pessoas, leitos ociosos e obras de interesse da própria universidade e de gestores do SUS – arremata.

Jeanne também explica que não há prazo final e nem pressão para que as instituições federais decidam-se pela ferramenta de gestão do governo.

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(Foto: Diorgenes Pandini/Agência RBS)

Entidades temem privatização da saúde

O aspecto mais polêmico sobre a adesão dos hospitais universitários ao modelo de gestão da Ebserh diz respeito à continuidade do atendimento pelo Sistema Único de Saúde (SUS) em sua totalidade. Isso porque, mesmo que seja sugerida pelo Governo Federal, trata-se de uma empresa pública de direito privado, ou seja, constituída por recursos exclusivamente públicos, mas regida por normas comerciais.

– O atendimento público será totalmente preservado. Se aderir à Ebserh, o HU da UFSC continuará prestando atendimento integral no âmbito do SUS e há previsão legal para isso – assegura a presidente em exercício da Ebserh, Jeanne Michel.

O diretor do HU, professor Carlos Alberto Justo da Silva, acredita que não exista essa ameaça à assistência gratuita.

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– É um factoide porque mesmo se o hospital aderir à Ebserh ele é obrigado a ser 100% SUS, segundo a lei da própria empresa. É uma maneira que os movimentos sindicais fizeram para tentar colocar essa questão para a sociedade, para a sociedade não apoiar – arrisca o professor.

– A proposta da empresa é que seja 100% SUS. O contrato terá de amarrar muito bem essa questão. Não podemos abrir mão de um hospital público que atenda à comunidade – reforça a vice-reitora da UFSC, Lúcia Pacheco.

Convênios de saúde

Mas há quem duvide. A representante da Frente Nacional Contra à Privatização da Saúde, Edileuza Fortuna, argumenta que a própria definição da Ebserh já dá margem para a abertura de convênios de saúde.

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– A empresa é aberta ao capital privado. Fica bastante claro que haverá prioridade ao atendimento particular em detrimento ao SUS. Teremos a porta-dupla – explica.

Para a pesquisadora da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Sara Granemann, o funcionamento da Ebserh é semelhante ao da Petrobrás.

– É uma lucratividade que não é inteiramente do Estado. Essa situação numa área como a saúde pode ser perigosa, pois é uma oportunidade de expansão dos lucros privados. E isso coloca em risco os HUs, que são a parte mais desenvolvida do conjunto da saúde pública em termos de inteligência, pesquisa e qualificação profissional – explica a especialista.

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(Foto: Diorgenes Pandini/Agência RBS)

O que é a Ebserh?

:: A Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh) é uma empresa pública de direito privado criada pelo Ministério da Educação por meio da Lei Federal nº 12.550 de dezembro de 2011.

:: De acordo com o próprio site da empresa, o objetivo desse modelo de gestão é o de oferecer serviços gratuitos de assistência médico-hospitalar, ambulatorial e de apoio diagnóstico e terapêutico à comunidade.

:: Também é dever da Ebserh a prestação de serviços de apoio ao ensino, à pesquisa e à extensão, ao ensino-aprendizagem e à formação de pessoas no campo da saúde pública nas instituições públicas federais de ensino.

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:: O primeiro HU a aderir ao sistema foi o da Universidade Federal do Piauí. Outros 29, de um total de 50, também já são geridos pela Ebserh. E 10 estão em processo de adesão, inclusive o da UFSC.

:: O Hospital de Clínicas de Porto Alegre, apesar de não ser vinculado a uma instituição federal, serviu de modelo para criação da empresa.

Carlos Alberto Justo da Silva, prof. Paraná, diretor do HU

Hora – Qual é o principal problema do HU? Eles podem ser resolvidos com a Ebserh?

Carlos Alberto – O principal problema do HU é a reposição de funcionários que estão faltando para reabrir as alas que estão desativadas, sem dúvida nenhuma. A condição de financiamento do hospital atualmente se encontra com alguns problemas tendo em vista que a desativação dos leitos e dos serviços acarreta uma diminuição dos recursos necessários para o hospital. Então reestabelecendo a capacidade instalada, você também passa a recuperar a sua condição de financiamento. Para isso, estamos adotando algumas medidas para adequar o financiamento do hospital à situação atual.

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O Governo Federal aponta como único instrumento que ele dispõe para contratação de pessoas é a adesão à Ebserh, que após a assinatura do contrato, tem um ano para repor os funcionários que estão faltando no HU. Por isso que a gente acredita que aderindo à Ebserh você resolve essa questão.

Hora – Em 2012, eram 60 leitos desativados. Qual é a situação atual?

Carlos Alberto – Hoje, são mais de 100 leitos desativados.

Hora – E o déficit de pessoas?

Carlos Alberto – Esse número dependerá do destino que darão aos leitos que estão hoje desativados. Porque, por exemplo, se você aumentar a UTI, você precisa de mais pessoas do que, por exemplo, abrir uma enfermaria normal. Tudo vai depender da hora que o contrato estabelece e de quais são as prioridades e necessidades de saúde do SUS e a partir daí se vê o tipo de instalação e, então, se define a quantidade de pessoal. Mas aproximadamente mais de 800 funcionários iremos receber, que é o que estão recebendo os hospitais que já aderiram e são do tamanho do nosso.

Hora – Essa defasagem impacta mais no atendimento de qual área do hospital?

Carlos Alberto – O Hospital para tentar manter-se minimamente aberto acaba desativando coisas em todos os lugares um pouco. Para não fechar determinadas alas inteiras, por exemplo, e o hospital ter mínimas condições de funcionamento sem entrar em colapso. Nós chegamos a uma condição que não dá mais para fechar nenhuma ala de internação porque quando se faz isso, é piorada a situação dos pacientes na emergência, que é o que já está acontecendo. O paciente chega na Emergência, tem leito desativado, e ele fica numa cadeira internado.

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Hora – O SUS estará ameaçado com a adesão da Ebserh?

Carlos Alberto – Isso não existe. É um factoide porque mesmo se o hospital aderir à Ebserh ele é obrigado a ser 100% SUS, segundo a lei da própria empresa. É uma maneira que os movimentos sindicais fizeram para tentar colocar essa questão para a sociedade, para a sociedade não apoiar.

Hora – Então a posição da direção do HU hoje é favorável?

Carlos Alberto – A posição do HU é a de reabrir todo o hospital para a população. E há muita preocupação em torno do plebiscito de amanhã (hoje) porque os principais interessados nessa situação não vão votar, que é a população de SC que usa o HU. Os prejuízos que nós já tivemos nesses três anos de discussão são irrecuperáveis. São aquelas milhares de pessoas que deixaram de ser operadas por centro cirúrgico fechado ou deixaram de ser internadas por leitos desativados. Se continuarmos com o hospital fechado, outras tantas pessoas também não serão atendidas. E a qualidade do Ensino na área da saúde está sendo prejudicada diariamente pela diminuição da capacidade do HU de oferecer condições de Ensino adequadas. A grande maioria que vota não será impactada pelas mudanças, mas a realidade é diferente para a população que depende do HU. Nós queremos um hospital aberto.

Hora – Como a Ebserh poderia aprimorar Ensino, Pesquisa e Extensão realizadas no HU?

Carlos Alberto – É uma relação direta entre capacidade de atendimento e capacidade de ensino. O HU para atender aos parâmetros de ensino deve ter em torno de 500 leitos ativos. Que é aquilo que a lei prevê: 5 leitos para cada estudante de medicina e nós temos 600 alunos. Até hoje nós não conseguimos atingir. E é claro que para formar as residências… como a prática da saúde é aprender fazendo, quanto mais você tiver capacidade instalada, maior é a chance de ter um aluno em situação de aprendizagem. E é claro que o Ensino fica fortalecido e, consequetemente, fortalece a Pesquisa clínica.

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(Foto: Diorgenes Pandini/Agência RBS)

Isabela Back, professora e vice-diretora do Centro de Ciências da Saúde (CCS)

Hora – Você é médica no HU, certo? Hoje, qual é o principal problema da estrutura que compromete o atendimento?

Isabela Back – Já fui mas agora trabalho dando aulas para a medicina e como vice-diretora do CCS/UFSC. Há 2 problemas mais graves no HU: falta de pessoal e falta de verbas. O HU teve nos últimos anos um numero significativo de funcionários que se aposentaram ou estão de licença médica e a UFSC não consegue repor, sozinha, este contingente. Assim, fomos perdendo nossos recursos humanos e hoje está trabalhando com cerca de 2/3 de sua capacidade total, que já é pequena pelo potencial do hospital e pelas demandas de assistência e de estudantes, por ser um cenário de prática importante para todos os cursos da saúde da UFSC.

Não cumprindo as metas do SUS quanto a atendimentos, o repasse para o hospital é menor do que o necessário para suprir as necessidades; assim, o HU/UFSC tem tido um déficit mensal de cerca de 800.000 reais. Para se ter uma ideia de como estão avançadas as contratações pelo Ministério, todo o repasse extra e o pagamento da dívida do nosso HU ano passado foi feito já pela EBSERH.

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Hora – A senhora acredita na ameaça ao atendimento 100% gratuito do SUS caso haja a adesão?

Isabela – Não. Nosso HU sempre pode ter atendimento privado ou por convênio e nunca teve, esta não é a vocação do nosso hospital. Quando se vê o processo de adesão nos outros HUs, o que ocorreu de fato foi um ajuste para ser 100% a pós a assinatura do convênio. Resta a nós a fiscalização dos termos da adesão. Sendo bem pragmáticos, somos hoje cerca de 60% SUS, porque temos cerca de 1/3 dos leitos fechados e procedimentos não sendo executados.

Hora – Como ficarão Pesquisa e Extensão realizadas no HU com a Ebserh? Continuarão? Serão aprimoradas ou pioradas?

Isabela – Como disse, temos a obrigação de fiscalizar os termos de adesão. Mas tudo leva a crer que teremos melhora de ensino, pesquisa e extensão, pois teremos muito maior volume de atendimentos, com maior complexidade, o que é extensão na sua essência, e teremos muito mais possibilidades de ensino e pesquisa.

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