As filas em pista simples na BR-101 na altura do Morro dos Cavalos, em Palhoça, por imposição das fortes chuvas de dezembro retomaram a discussão sobre um antigo projeto que minimizaria os transtornos por deslizamentos no trecho: o de passar com a rodovia por ali em dois túneis. A eventual solução começou a ser discutida ainda nos anos 1990, esperou uma década para ter um projeto, tramitou em conjunto com a demarcação de uma terra indígena que engloba o local e estacionou por falta de verba federal.
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A construção dos túneis integraria a duplicação da BR-101 de Osório, no Rio Grande do Sul, a Palhoça, que teve início em janeiro de 2005. A obra acabou entregue, no entanto, em setembro de 2016 sem as passagens subterrâneas. Em vez disso, foi adaptada uma duplicação que contorna o Morro dos Cavalos com duas faixas a mais, mas sem acostamento e sob o risco comum de quedas de barreira.
O local segue do mesmo modo e passa hoje por obras de contenção de encosta executadas pela Autopista Litoral Sul, concessionária responsável pelo trecho. O trecho terá um desvio improvisado durante as festas de fim de ano, quando o fluxo sobe a 100 mil veículos por dia, segundo a Polícia Rodoviária Federal (PRF). Em dias comuns, isso fica em 60 mil, com picos de até 80 mil.
O trecho onde seriam feitos os túneis está dentro da Terra Indígena Morro dos Cavalos, que é de posse reconhecida do povo Guarani M’bya desde 2008, mas ainda não conta com homologação da demarcação assinada pelo presidente da República. Segundo registros dos indígenas, os primeiros estudos geológicos sobre a viabilidade do projeto tiveram início em 1999, quando ainda era também discutida a duplicação da BR-101 em Santa Catarina, que divide atualmente a aldeia Itaty, às margens da pista.
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O projeto básico envolvendo dois túneis só ficou pronto em 2010. Antes disso, conforme registrou o NSC Total à época, houve a proposta de alargamento da pista, que foi vetada pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) devido à previsão de grandes aterros e cortes em rochas, e uma outra de um túnel simples, que recebeu contrariedade dos indígenas.
A comunidade Guarani pedia desde 2000 a execução da obra em túnel duplo, para que o leito anterior da BR-101 no trecho fosse desativado e a aldeia não fosse separada pela pista. Em 2005, um parecer do Tribunal de Contas da União (TCU) recomendou a realização da obra também deste modo, por contemplar o direito indígena, minimizar impactos ambientais e ser mais viável economicamente.
Em 2011, já com um projeto básico, o trecho do Morro dos Cavalos passou então a aguardar licenciamento ambiental. Nesta etapa, a Fundação Nacional do Índio (Funai) também passou a atuar no processo, para que fossem realizados estudos de impacto socioambientais sobre a comunidade indígena. Havia preocupação dos guaranis de que o plano tido naquela altura prejudicasse as nascentes que abastecem a aldeia, conforme lembra a liderança local Kerexu Yxapyry.
Ela também conta, ao NSC Total, que, até o fim de 2015, quando o grupo assinou a licença junto à Funai para a realização das obras, os indígenas foram alvo de ataques por receberem o estigma de que eram contrários à duplicação da rodovia, quando se mostravam favoráveis à construção dos túneis duplos.
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— Teve um julgamento para cima dos indígenas do Morro dos Cavalos, dizendo que não deixávamos duplicar a BR. Para nós, o ataque maior é relacionado à questão da terra, de não aceitar que essa é uma terra indígena. Existe um racismo muito grande contra a existência do povo indígena. A sociedade não quer assumir esse racismo, então usou como desculpa essa questão da BR. Para nós, a BR-101 foi uma arma muito grande de ataques à terra indígena. Não é um histórico legal para nós — destacou Kerexu.
Com as devidas correções no projeto, foi lançado então pelo Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit), autarquia ligada ao Ministério da Infraestrutura, o edital que, enfim, licitaria a obra, ao final de 2016. No ano seguinte, no entanto, o Plenário do TCU determinou a suspensão do processo.
O acórdão 502/2017 estabeleceu que a licitação não deveria ser realizada enquanto não houvesse previsão de orçamento federal que garantisse a execução dela. Além disso, o TCU lembrou na decisão que as duplicações das BR’s 470 e 280 em Santa Catarina deveriam receber prioridade nisso e já pereciam com um andamento lento. Só quando ambas fossem entregues, portanto, o que era esperado aquela altura para 2020, é que os túneis da BR-101 deveriam ser feitos, ou se houvesse dotação suficiente.
O assunto foi encerrado ali no TCU. As obras das BR’s 470 e 280 seguem até hoje em ritmo lento. De acordo com o Dnit, elas exigem atualmente R$ 468 milhões e R$ 957 milhões, respectivamente, para serem terminadas. No orçamento de 2023 aprovado no Congresso Nacional nesta quinta (22), a previsão de valores reservados para cada estava em R$ 101,6 milhões e R$ 48 milhões.
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A liderança guarani Kerexu diz que a comunidade do Morro dos Cavalos chegou a solicitar um posicionamento público do Dnit sobre o gargalo orçamentário, para que fosse superado o entendimento comum sobre o suposto entrave indígena à obra. O pedido, no entanto, não foi aceito. Ela afirma que a aldeia ainda aguarda a construção dos túneis, o que diz ter sido deixado de lado durante o governo Jair Bolsonaro (PL), e acrescenta ver a rotina dos indígenas prejudicada pelo intenso fluxo que corta o local.
— A gente tem o parquinho, a escola e o campo de futebol que ficam à beira da rodovia. Então a gente tem essa vulnerabilidade. O que colocamos na licença da Funai é que, a partir do momento em que os túneis estiverem feitos, esse espaço da BR retorne para a comunidade, para que haja a recomposição da vegetação e para que essa mão duplicada vire uma faixa comunitária, para transportes públicos e locais.
Ao NSC Total, o Dnit disse que o trecho não está mais sob sua jurisdição e que o tema deveria ser tratado com a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), que administra concessões de rodovias.
O trecho onde ficariam os túneis está entre os KM’s 232 e 235,3 da BR-101 em Santa Catarina, que hoje integram a concessão à Autopista Litoral Sul. O contrato inicial, no entanto, assinado em 2008, previa que a concessionaria iria gerir do KM 0 ao 222, deixando de fora o Morro dos Cavalos.
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Foi um aditivo assinado em 2012, quando o Dnit já operava a duplicação do trecho Sul da BR-101, que estendeu a administração da empresa por mais 23 quilômetros, até o KM 245, na ponte que passa sobre o rio da Madre, para que uma praça de pedágio em Palhoça fosse transferida à parte final da concessão.
O aditivo já previa que eventuais obras de aumento da capacidade do trecho do Morro dos Cavalos, como a construção dos túneis, deveriam ser executadas pelo Dnit ou, somente em caso de revisão do reequilíbrio econômico financeiro do contrato (aumento dos valores do pedágio), pela concessionária. A reportagem questionou a ANTT se isso está hoje em discussão, mas ainda não obteve retorno.
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