*Robert P. Baird

Em um vídeo de cinco minutos postado em sua conta no Twitter na quarta-feira, o presidente Donald Trump ficou em frente à Casa Branca e endossou, de forma generosa, o tratamento que recebeu enquanto ficou hospitalizado no Hospital Militar Nacional Walter Reed.

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“Eles me deram Regeneron e foi inacreditável. Eu me senti bem imediatamente. Quero que todos recebam o mesmo tratamento que seu presidente recebeu”, disse ele, referindo-se a um coquetel experimental de anticorpos monoclonais produzido pela farmacêutica Regeneron.

O vídeo do presidente levantou muitas questões, incluindo se era provável que o coquetel de anticorpos tivesse um efeito tão dramático em tão pouco tempo. (Alguns médicos estavam céticos.) Mas ao menos para uma pergunta – como o presidente planejava garantir que uma terapia ainda não aprovada pela FDA (a agência federal norte-americana responsável pelo controle de alimentos e remédios) estaria disponível em breve para “todos” – ele tinha uma resposta pronta: “A autorização de uso emergencial está pronta. E temos de assiná-la agora”, informou o presidente em seu vídeo.

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A menção do presidente à autorização de uso emergencial é o último estágio de uma transformação que fez com que uma parte antes obscura da lei regulatória se tornasse uma peça central da resposta do governo federal à pandemia do coronavírus. Vacinas, medicamentos e dispositivos médicos vendidos nos Estados Unidos geralmente precisam da aprovação da FDA, um processo rigoroso que visa demonstrar a segurança e a eficácia deles. Há mais de 15 anos, no entanto, a FDA tem autoridade, quando certas condições são atendidas, para conceder autorizações de uso emergencial, que permitem a venda de produtos médicos não aprovados.

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A FDA concedeu autorizações de uso emergencial durante vários surtos de doenças anteriores, incluindo a gripe H1N1, em 2009, e o zika vírus, em 2016, mas a pandemia do coronavírus tem visto uma escalada das autorizações de uso emergencial.

Desde fevereiro, a agência já concedeu mais de 300 autorizações de uso emergencial relacionadas à Covid. A maioria foi concedida para testes de diagnóstico, mas também para equipamentos de proteção individual, dispositivos de purificação do sangue, ventiladores pulmonares e terapias. (Algumas dessas autorizações foram objeto de considerável controvérsia, principalmente aquela que autorizou o uso da cloroquina e da hidroxicloroquina para tratar a Covid-19, e que foi posteriormente revogada, em junho.) Muitos observadores acreditam que as vacinas contra a Covid estarão disponíveis nos Estados Unidos inicialmente por meio de uma autorização de uso emergencial.

Os regulamentos que regem as autorizações de uso emergencial foram originalmente promulgados como parte do Bioshield Act, uma lei de 2004 concebida para ajudar o país a se preparar para ataques terroristas químicos, biológicos, radiológicos e nucleares. A aprovação da FDA há muito é reconhecida como o padrão ouro para produtos médicos, mas os requisitos para obtê-la, que geralmente incluem testes clínicos, inspeções das instalações de fabricação e análises estatísticas detalhadas, podem levar muito tempo. Depois dos ataques terroristas de 11 de setembro e especialmente das correspondências com antraz no fim daquele ano, o país reconheceu que mesmo os mecanismos de aprovação mais rápidos da agência eram lentos e inflexíveis demais para lidar com uma emergência real.

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Para enfrentar tais preocupações, o presidente George W. Bush propôs o Projeto Bioshield durante seu discurso do Estado da União, em 2003. O projeto estabeleceu incentivos para empresas que estavam desenvolvendo contramedidas médicas e permitiu que o governo federal estocasse produtos não aprovados, bem como que a FDA autorizasse o uso emergencial dos produtos.

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O Bioshield Act, ao lado das leis que mais tarde o modificaram, não pretendia ser uma carta branca. Por exemplo, uma autorização de uso emergencial só pode ser dada durante uma emergência declarada de saúde pública ou de segurança nacional e deve ser usada apenas para os produtos que não tenham alternativas adequadas, aprovadas ou disponíveis. Mas à FDA foi concedida ampla discrição para decidir se um produto deveria ser disponibilizado ao público. Segundo a lei, a agência pode conceder uma autorização de uso emergencial a um produto que “possa ser eficaz e cujos benefícios conhecidos e em potencial superem os riscos conhecidos e em potencial”. Contudo, cabe à agência determinar quais são esses critérios.

“Era deliberadamente um tipo de padrão bastante flexível”, explicou o dr. Jesse Goodman, diretor do Centro de Acesso, Segurança e Gestão de Produtos Médicos, em Georgetown, e cientista-chefe da FDA de 2009 a 2014. Segundo ele, as autorizações de uso emergencial devem ser avaliadas caso a caso; a FDA pode tolerar mais riscos para uma droga projetada para tratar uma doença com alta taxa de mortalidade, como a do vírus ebola, do que para uma vacina que seria dada a pessoas saudáveis visando à interrupção de uma doença como a Covid-19.

Mas ele acrescentou que as autorizações de uso emergencial não pretendiam substituir as aprovações tradicionais: “A intenção original era que, em última análise, os dados fossem coletados e esses produtos fossem encaminhados para aprovação”, mesmo depois de a autorização de uso emergencial ser concedida.

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No entanto, pode ser difícil inscrever um produto para os testes clínicos completos depois de receber uma autorização de uso emergencial, já que os testes clínicos completos normalmente impõem requisitos mais rigorosos aos pacientes. “Agora temos dezenas de milhares de pessoas recebendo o plasma convalescente e ainda não sabemos se isso funciona”, comentou o médico, referindo-se ao tratamento para a Covid-19 que recebeu a autorização de uso emergencial em agosto.

Outro perigo potencial da autorização de uso emergencial se tornou aparente não muito tempo depois que o Bioshield Act foi sancionado, quando a FDA concedeu sua primeira autorização de uso emergencial, a pedido do Departamento de Defesa, para uma vacina contra o antraz, em 2005. Essa autorização sugeriu a algumas pessoas, entre elas Chris Shays, na época congressista republicano de Connecticut, que o processo de autorização de uso emergencial abria um caminho para interferência política. “A aparente urgência parece ser o produto de falhas legais e regulatórias evitáveis, e não de uma ameaça externa validada”, escreveu Shays em uma carta ao secretário de Saúde e Serviços Humanos.

As ações da administração Trump durante a pandemia da Covid renovaram essas preocupações. Em maio, Rick Bright, ex-chefe da Autoridade Biomédica de Pesquisa e Desenvolvimento Avançado, alegou em uma denúncia que havia organizado um pedido de autorização de uso emergencial para a hidroxicloroquina e a cloroquina como uma “posição de compromisso”, visando evitar a pressão de funcionários do governo para tornar os medicamentos disponíveis sob um protocolo menos restritivo conhecido como “acesso expandido”.

No fim de setembro, Trump disse que estava considerando bloquear as diretrizes da autorização de uso emergencial de vacinas da FDA, o que tornaria improvável que uma vacina fosse autorizada antes da eleição presidencial, porque ele as via como, “acima de tudo, um movimento político”. E a insistência de Trump, no vídeo postado na quarta-feira, em que “temos de assinar agora” uma autorização de uso emergencial para os anticorpos Regeneron foi uma intervenção extraordinária em um processo que geralmente envolve somente cientistas de carreira da FDA. (Poucas horas depois de Trump postar o vídeo, a Regeneron anunciou que havia oficialmente requerido uma autorização de uso emergencial, embora a empresa já tivesse sugerido a intenção de obtê-la.)

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Funcionários da FDA, por sua vez, deixaram clara sua determinação durante a pandemia de manter as autorizações de uso emergencial livres de interferência política. O dr. Peter Marks, chefe do Centro de Avaliação e Pesquisa Biológica da FDA, informou em uma entrevista ao “The Journal of the American Medical Association”, na segunda-feira, que as reuniões do comitê consultivo de vacinas da FDA seriam transmitidas on-line para assegurar máxima transparência.

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Segundo Marks, “queremos ter a certeza de que a população americana sabe que está recebendo o resultado de dados e não de pressão”. E um porta-voz da FDA apontou para um discurso do comissário da FDA, o dr. Stephen Hahn, na terça-feira, ao Instituo Legal de Alimentos e Remédios (FDLI, na sigla em inglês), no qual enfatizou que as decisões da agência foram e serão “baseadas na ciência e nos dados, e não na política”.

O dr. Eric Topol, professor de Medicina Molecular da Scripps Research, comentou que Trump não facilitou para a agência a manutenção de seu aspecto de independência. Topol acreditava que os anticorpos da Regeneron teriam recebido uma autorização de uso emergencial sem o endosso de Trump, e possivelmente antes do dia da eleição, mas ele receava que o presidente planejasse “usar isso como uma alavanca política, da mesma forma que estava planejando usar a vacina”.

Mesmo assim, Topol disse estar animado com o fato de a FDA ter divulgado sua orientação para autorizar o uso emergencial da sua vacina na terça-feira, apesar da relutância inicial de Trump. As diretrizes exigem dados de segurança e eficácia que Marks descreveu como uma “autorização de uso emergencial premium” e incluem a exigência de que os fabricantes monitorem os participantes em testes clínicos no estágio final por uma média de dois meses para garantir a segurança de longo prazo de uma vacina. “Tenho sido muito duro com Hahn e com a FDA, mas fiquei aliviado e absolutamente encantado em vê-lo se impor”, disse Topol.

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Caberá aos fabricantes decidir se solicitarão uma autorização de uso emergencial para as vacinas candidatas contra a Covid-19. Muitos especialistas em saúde pública afirmam que há condições sob as quais uma autorização de uso emergencial para uma vacina contra o coronavírus seria adequada. Um pedido de aprovação formal de uma vacina pode exigir dezenas de milhares de páginas de documentação, e mesmo uma revisão prioritária de uma nova vacina geralmente demora oito meses, depois da conclusão dos testes clínicos.

“Há muitos pingos nos is e traços nos tês antes que uma vacina seja aprovada”, frisou Susan Ellenberg, ex-funcionária da FDA e professora de Bioestatística na Universidade da Pensilvânia. Segundo ela, depois de concluir um ensaio clínico, era possível, caso não houvesse nenhum problema de segurança, que os funcionários da agência “emitissem uma autorização de uso emergencial antes de amarrar tudo para a aprovação formal”.

Ainda assim, Ellenberg observou: “Vimos um envolvimento sem precedentes da alta administração em algumas dessas questões”.

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Como não está claro quanta pressão política os cientistas da FDA estão sofrendo, ela mencionou que gostaria de ver os dados dos testes clínicos antes de decidir se deve confiar em uma vacina que recebeu uma autorização para uso emergencial. “Se me pareceu ser bastante eficaz e não vi nenhum problema de segurança, então definitivamente recomendaria às pessoas. Eu também tomaria a vacina.”

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