Nos últimos dias, dois dos principais institutos de pesquisa governamentais deixaram de lado o venerável papel de fornecer dados que viram notícia para se transformar, eles próprios, em notícia – e até mesmo em piada.

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Quem desafinou primeiro, depois de alguns momentos de glória sobre o palco estatístico, foi o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Em um dia, a instituição ganhava manchetes no Brasil e no mundo ao revelar que 65% dos brasileiros aprovam o ataque a mulheres de guarda-roupa provocativo. No outro, virava manchete no Brasil e no mundo por confessar que trocara as notas e atravessara o samba. Na verdade, o índice de brasileiros de mentalidade paleolítica era de 26%. As redes sociais, que se incendeiam todos os dias por muito menos, não perdoaram. Espezinharam e cuspiram no Ipea até cansar.

Na semana passada, foi a vez do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) emitir trinados cacofônicos. Depois de uma complicada questão envolvendo o cálculo da renda per capita familiar, o repasse de recursos a governos estaduais, a suspeita de tentativa de interferência política no instituto e – ufa! – a polêmica decisão de interromper a divulgação da chamada Pnad Contínua, a diretora de pesquisa Marcia Quintslr pediu demissão em protesto contra um suposto distanciamento entre a presidência do IBGE e o rigor técnico. Era como se o maestro abandonasse a batuta. A orquestra foi atrás: 18 coordenadores e gerentes, a nata da instituição, a elite técnica do instituto, se solidarizaram e ameaçaram se exonerar também.

Em questão de uma semana, dois dos mais respeitados corpos estatísticos do país deixavam os brasileiros com um pé atrás. Ex-presidente do IBGE e ex-vice-presidente do Ipea, o professor de ciência política Edson Nunes define a situação como um “momento grave e infeliz”:

– O IBGE e o Ipea são uma espécie de Banco Central do país, o banco central de dados. Não pode haver suspeita sobre a idoneidade desses órgãos. Se há dúvidas a respeito deles, não são eles que perdem a respeitabilidade, é o país inteiro. Basta olhar para nossos vizinhos argentinos.

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Nunes se refere à má reputação ganha pela Argentina depois que o governo Cristina Kirchner interferiu no instituto local de estatística, demitiu a diretora e pôs no ostracismo parte dos técnicos, tudo com a finalidade de obter alívio aparente na medida da inflação do país. Não faltou quem enxergasse nas trapalhadas do Ipea e na rebelião do IBGE um eco, ainda que distante, das complicações platinas.

A situação mais clara é a do Ipea. Quando o instituto admitiu que trocara as tabelas na pesquisa sobre violência contra a mulher, abriram-se as comportas das críticas a sua suposta ideologização e aparelhamento político a partir do governo Lula. O instituto chegou a abrir um escritório na Venezuela, iniciativa questionada por profissionais da área. Seria a agenda política que explicaria, também, o fato de o instituto ter decidido sair às ruas para perguntar sobre trajes femininos e ataques a mulheres, assumindo o papel de uma espécie de Ibope governamental.

– Não quer dizer que o Ipea não possa fazer pesquisa social, mas há redes especializadas nisso. Houve um desvio de foco. Eu diria que politização foi a novidade desagradável do Ipea nos últimos anos – afirma Nunes.

Teria sido nesse contexto de risco de politização, ainda que distante, que o corpo técnico do IBGE explodiu.

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– É estranho. Parece pesquisa privada. Tradicionalmente, o Ipea atende às solicitações do governo. Nossa preocupação é defender a autonomia do IBGE – diz Susana Drumond, diretora do Sindicato Nacional dos Trabalhadores em Fundações Públicas Federais de Geografia e Estatística.

Metodologia altera taxa de desemprego

Para compreender a presente crise no IBGE é necessário recuar à lei do ano passado que mudou a forma de distribuição dos recursos do Fundo de Participação dos Estados (FPE). Até aqui, levava-se em conta o PIB per capita para definir o bolo de cada governo estadual. Com a nova legislação, o critério passará a ser a renda domiciliar per capita. No começo do mês, senadores levantaram dúvidas sobre o cálculo. O receio era de que Estados pudessem reivindicar repasses maiores na Justiça.

Em resposta, a presidente do IBGE, Wasmália Bivar, levou a questão ao colegiado da instituição, que decidiu interromper a divulgação da chamada Pnad Contínua até o próximo ano, para reformular a metodologia e atender ao requerimento dos senadores. A decisão ocorreu dias depois de a pesquisa banida, utilizando nova metodologia, apontar índice de desemprego de 7,1% no país em 2013, acima dos 5,4% medidos pelo método tradicional – em ano eleitoral, um banho de água fria para o governo.

O corpo técnico do IBGE não foi consultado sobre a decisão de suspender a Pnad, o que levou ao pedido de demissão de Márcia Quintslr, diretora de pesquisas, além da ameaça de exoneração de 18 coordenadores. Ontem, 21 coordenadores negaram em nota que haja ingerência política no órgão e afirmaram que a carta de repúdio tinha por fim garantir a divulgação da Pnad Contínua.

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Professor de Economia da PUCRS, Alfredo Meneghetti Neto, especialista em finanças públicas, explica que o critério adotado direciona maior fatia de recursos a Estados com renda per capita mais baixa. Geralmente, no Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Mas o Bolsa-Família deve ter melhorado os ganhos dessas regiões, e a mudança no cálculo tenderia a manter a distribuição do FPE como está.

Os institutos

IBGE

Fundado em 1938, durante a ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas.

Órgão oficial de pesquisa nas áreas de geografia, cartografia e estatística lida com dados objetivos.

Ipea

Criado em 1964, com o nome de Escritório de Pesquisa Econômica Aplicada, tornou-se uma fundação pública e recebeu a denominação atual a partir de 1967.

Vinculado à Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, tem por objetivo fornecer suporte à formulação de políticas públicas.

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Lida principalmente com a interpretação de dados coletados por institutos como o IBGE e também faz pesquisas, inclusive com dados qualitativos, como opinião.

Problemas anteriores

Censo de 1990 saiu em 1991

Tradicionalmente feito em anos de final zero, o Censo 1990 saiu um ano depois porque o governo Collor, que pretendia enxugar o funcionalismo público, postergou a contratação, em caráter temporário, de 180 mil pessoas para a tarefa.

Ajuste no desemprego

Em 2002, o IBGE mudou a metodologia da Pesquisa Mensal de Emprego (PME).

Os números do IBGE sobre o desemprego, que ficavam abaixo dos índices de outros institutos, como o Dieese, tiveram elevação com as mudanças implantadas.

Em 2003, o recém-instalado governo do PT acusou o IBGE de criar uma “armadilha estatística” para fazer parecer que o desemprego havia subido.

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Segundo o professor de economia Luiz Augusto Estrella Faria, da UFRGS, o sistema antigo era mais adequado à realidade de países desenvolvidos do que à brasileira.

Tropeço argentino

O índice oficial de inflação na Argentina é motivo de controvérsias desde 2007, quando o então presidente Néstor Kirchner determinou uma intervenção no Instituto Nacional de Estadística y Censos (Indec).

Economistas e políticos de oposição passaram a questionar a credibilidade do índice de preços, que estaria sendo manipulado para esconder aumentos.

Consultorias privadas passaram a medir a inflação usando métodos próprios. Os resultados foram índices muito acima dos oficiais. Os institutos acabaram multados por realizarem as pesquisas.

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Em 2013, o Fundo Monetário Internacional (FMI) emitiu uma moção de censura contra a Argentina pela pouca credibilidade das estatísticas divulgadas.

Em fevereiro passado, o governo apresentou um novo índice para calcular a inflação, que apresenta uma variação superior à do antigo cálculo, mas que ainda está abaixo da realidade, segundo opositores da presidente Cristina Kirchner.

*Colaborou Eduardo Nunes