Segunda-feira será um dia decisivo para as cerca de 30 famílias que continuam alojadas na escola Professora Rosa Maria Xavier de Araújo, no bairro Meia Praia, em Navegantes. Sem ter para onde ir, elas temem não conseguir cumprir o prazo dado pela prefeitura para a desocupação do colégio, cujas aulas iniciam dia 29.
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Cientes que vivem irregularmente no local, durante toda a sexta-feira homens, mulheres e crianças deixaram organizados os pertences que salvaram e carregaram dos barracos da área de invasão onde moravam, no entorno do Aeroporto Ministro Victor Konder. Apesar do esforço, caso a semana comece com as famílias ali, a prefeitura, em conjunto com a Polícia Militar, está autorizada pela Justiça a fazer a remoção de todas
as pessoas do local.
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Segundo o secretário de Articulação Política, Arilson Luis Moraes, a ação na segunda-feira deve ocorrer entre 7h e 8h. Antes disso, na manhã de sábado, equipes do Conselho Tutelar e da Assistência Social voltarão ao local para tentar, mais uma vez, oferecer passagens para que as pessoas que ainda não conseguiram sair do local voltem para suas cidades.
– Não queremos confronto com ninguém, mas precisamos liberar o prédio e fazer toda a manutenção da escola para que os 1.040 alunos da unidade comecem o ano letivo sem transtornos – justifica Moraes.
Paralelo ao discurso do poder público, que afirma ter oferecido plena assistência e custeio de passagens para retorno às cidades natais, os desalojados defendem que construíram suas vidas em Navegantes. São famílias como a de Ricardo Reis da Rocha Santos, que veio de Pernambuco e, depois de perder o emprego como pedreiro, tinha uma pequena bicicletaria na antiga ocupação até ter todas as ferramentas perdidas durante a ação da polícia. Ou como a de Maurici da Fé Soares, que saiu de São Paulo em busca de um lugar melhor para criar os filhos, mas esbarrou em burocracias para alugar uma casa e, vencido pelos desafios, foi morar no terreno ao redor do aeroporto. E histórias como a do pastor e catador de recicláveis Valdemir Ferreira Lima, que tomou para si a responsabilidade de orientar as famílias que vivem na escola desde janeiro.
(foto: Lucas Correia)
Abrigo para quem não tem destino
– Minha história não tem o que comover, não.
Maurici da Fé Soares, 28 anos, é um homem sem rodeios. Natural de São Paulo – agora morador de Navegantes -, começou a trabalhar cedo. Com 18 anos já pilotava uma moto no emprego de motoboy em uma pizzaria. Quando perdeu o veículo, ganhou do patrão uma nova chance: seria telefonista. Perto do forno, Maurici se encantou com o modo de preparo das pizzas e, em troca de limpar todo o local no fim do expediente, começou a ser treinado para exercer a profissão. Um mês e meio depois, iniciava a carreira que duraria 10 anos.
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Desempregado, descobriu que uma pizzaria no litoral catarinense precisava de pizzaiolo com experiência. Agarrou a oportunidade e, ao lado da esposa Cristiana França da Silva, 29, e dos três filhos se mudou. Morando de aluguel em uma casa emprestada pelo novo patrão, Maurici se descobriu sem saída quando viu que não conseguiria trabalhar aqui.
– Eu fazia tudo na mão e lá tinha que usar cilindro. Foi muito difícil – lembra.
Desempregado e agora sem moradia, Maurici se deparou com outra dificuldade: alugar uma casa. O paulista conta que os lugares que podia pagar não aceitavam crianças e acabou desembolsando R$ 800 de aluguel.
– Eu era estoquista e ganhava uns R$ 800 e minha esposa também. Sobrava um pouquinho para as despesas, mas fiquei desempregado. O salário da Cristiana pagava o aluguel, mas passávamos necessidade. A gente só sobrevivia. Foi quando ficamos sabendo da ocupação. Fomos lá e eles falaram: aqui é um abrigo para quem não tem destino – lembra.
Hoje, sozinho em uma sala que já foi divida com seis famílias, Maurici revela que quem tinha alguma opção foi embora, mas que ele não sabe o que fazer:
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– Não é guerra. Estamos esperando até o último minuto porque não temos um teto. Vamos sair de cabeça erguida, sem confusão com ninguém. Somos famílias de bem.
(Foto: Lucas Correia)
Bicicletas, sonhos e Bob Esponja na televisão
Preocupada, Ângela Maria da Silva, 42, vestiu uma blusa de malha rosa sobre o vestido florido. Queria ficar bonita. Arrumou os cabelos da filha Débora Raquel, de apenas dois anos, colocou-a no colo e posou ao lado do marido, Ricardo Reis da Rocha Santos, que segurava uma bicicleta azul com dois assentos de plástico de cor cinza.
A fotografia retrata um dos únicos bens que eles conseguiram salvar quando a polícia comandou a desocupação da família dele e de outras 300 pessoas nos entornos do Aeroporto Ministro Victor Konder. Foi Ricardo quem consertou a magrela, agora usada para levar Débora e a outra filha do casal, Dássia, de quatro anos, à creche.
Há alguns meses, Ricardo, que é conhecido pelos colegas como Pernambuco, conseguiu com a ajuda de conhecidos montar uma pequena bicicletaria no espaço irregular, ocupado na época por cerca de 79 famílias. Com ferramentas emprestadas e um voto de confiança do dono de outra bicicletaria no Centro, Pernambuco chegou a tirar R$ 600 em duas semanas, só com pequenos consertos e reparos, principalmente nos pneus.
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Pedreiro de profissão, ele aprendeu o segundo ofício ainda em terras pernambucanas, que abandonou há quatro anos quando conseguiu emprego em uma obra no Litoral. Inquilino em uma casa simples, o homem de olhos claros e sotaque carregado se viu sem saída quando, por conta de um desentendimento, foi demitido. Sem dinheiro, o destino foi a ocupação perto do aeroporto.
No chão da sala da escola Professora Rosa Maria Xavier de Araújo, no bairro Meia Praia, os lençóis com os elásticos já gastos escapavam dos colchões jogados no chão do lugar. Na televisão, o desenho animado Bob Esponja distraía as crianças que, pequenas demais, ainda sorriem esperançosas.
– Já bateu um desespero, mas olho para os meus filhos e para minha esposa e sigo firme. É difícil, não temos para onde ir. A única coisa que eu vou fazer é pegar as minhas coisas e deixar ali na frente. Vou cobrir com uma lona e proteger as crianças – desabafa Ricardo.
Eles não pretendem deixar Navegantes. Para Ângela, como aqui os filhos estão matriculados na creche, é uma oportunidade para conseguir um emprego. Já Ricardo sonha em conseguir reerguer a bicicletaria:
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– Tenho certeza que todo mundo ia me procurar porque gostavam do meu serviço.
(Foto: Lucas Correia)
Um homem de fé
Era de manhã e Valdemir Ferreira Lima, 45 anos, se revezava entre tirar algumas salsichas de um pacote plástico para descongelar e dar um pouco de óleo para outro morador. Sem bacias, um balde comum era usado para deixar o alimento na água enquanto o restante do almoço era preparado. No último mês, a cozinha da escola Professora Rosa Maria Xavier de Araújo, no bairro Meia Praia, em Navegantes, se tornou parte da vida deles. E cuidar das refeições é uma das muitas funções desempenhadas pelo até então catador de recicláveis.
Escolhido representante das famílias cadastradas pela Assistência Social que ainda permanecem no prédio público, o pastor do Ministério Pentecostal do Mato Grosso acredita ter sido enviado para o Litoral por vontade divina. Acabou se tornando o líder do grupo de desabrigados por decisão dos próprios moradores, depois que o antigo ocupante do cargo fugiu levando o dinheiro deles.
Chamado de irmão, Valdemir mora em Navegantes há pelo menos quatro anos. Antes de casar com Daniele Custódio Ferreira, há cerca de um ano, o pastor investiu recursos em uma empresa de terraplanagem no Oeste do Estado – o negócio faliu meses depois quando, segundo ele, o governo ordenou corte de verbas. Sem emprego, sem dinheiro e com o nome sujo, Valdemir se viu em uma situação difícil.
– Com o nome limpo já é complicado, imagina com o nome sujo. Foi assim que comecei com a reciclagem. Cato papelão, latinha e vendo. Consigo uns R$ 800, R$ 1 mil por mês. Trabalhando direito a gente sobrevive, aqui é um bom lugar para trabalhar. Pensei até em abrir uma cooperativa de reciclagem. Temos boas ideias, mas faltam recursos – lamenta.
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Assim como as outras 30 famílias que seguem na escola, Valdemir não tem para onde ir quando o fim de semana – e o prazo da prefeitura para a desocupação – terminarem:
– Vamos encontrar um novo lugar. E para nós qualquer beira de rua é um lugar, mas tudo se tornou ilegal. Eles não entendem que não temos condições financeiras de morar em outro lugar.