Toda morte violenta de uma mulher é uma tragédia. Se ela ocorre pelas mãos de alguém que se acha superior a ela, o caso é ainda mais grave. Em Blumenau, três dos sete homicídios registrados este ano têm essas características. Duas dessas mulheres foram brutalmente assassinadas pelos homens com quem dividiram parte da vida, a quem deram filhos e com quem quiseram, algum dia no passado, construir uma família.
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Foi assim com Neiva. Ela conheceu Márcio e achou que ele era o homem com quem a vida teria mais sentido. A filha Aline Hostin, 24 anos, conta que a mãe sempre trabalhou como empregada doméstica para tentar proporcionar melhores condições à família. O pai era profissional da construção civil.
Desde que tem alguma memória a jovem lembra da violência vivida dentro de casa. As agressões à mãe se estenderam aos filhos depois que eles cresceram e tentavam defender a progenitora. Mais tarde, as brigas do casal ficaram constantes, motivadas pelo desejo dela de se separar e sair daquele círculo de violência, medo e abuso.
– Eles ficaram 25 anos juntos. Meu pai trabalhava, mas sempre teve problema de alcoolismo, chegava bêbado e isso incomodava a minha mãe. Muitas vezes ele bateu nela e ela ficou quieta.
Quando Neiva tentou mudar, a situação piorou. Aline conta que a mãe resolveu cuidar mais de si mesma. Matriculou-se em uma academia, comprou roupas novas – e isso só aumentou a fúria do marido e a frequência da combinação explosiva de violência: raiva, bebida e agressões.
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– Quando ela falou “vou sair!”, pegar as coisas dela e ir embora, foi que aconteceu. Ele não aceitou e fez o que fez – diz a filha, sem conter as lágrimas.
O que ele fez, segundo o relato que teria dado à polícia, foi estrangular e dar marretadas na cabeça da esposa. Depois, escondeu o corpo sob um monte de areia nos fundos do terreno onde fica a casa em que moraram juntos e criaram os cinco filhos. Um deles foi quem encontrou o corpo agredido e inerte da mãe, Neiva Alice Otto, morta aos 46 anos. Dois dias depois do crime, Márcio Hostin se entregou à polícia.
Neiva divide sua história tão particular e tão comum com Katia, outra vítima de uma relação que se transformou em pesadelo e morte. Aos 30 anos, ela tinha quatro filhos: o mais velho mora com o pai na cidade de Armazém, Sul de Santa Catarina, e os outros três viviam com ela, em Blumenau. Maria Aparecida Moraes Felacio, 51 anos, tia, madrinha e a quem Katia recorria sempre que tinha algum problema, ainda se emociona ao lembrar da afilhada:
– Ela era muito trabalhadora. Era revisora, mas como o salário era pouco ela fazia coisas pra vender: trufa, orelha de gato… E vendia tudo. Só assim ela conseguia dar conta para cuidar das crianças.
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O relacionamento com Noel, iniciado há cerca de cinco anos, já não existia mais. A casa onde os dois moravam foi literalmente dividida ao meio. Num dos lados ela vivia com três filhos – uma menina de 7 anos, de um relacionamento anterior, e dois meninos, com 4 e 2 anos, filhos do homem com quem um dia dividiu momentos no pequeno imóvel de paredes cor de céu, no topo de um morro do bairro Nova Esperança.
Mais uma vez, uma história de discussões que terminavam em agressões e que eram ouvidas pelos vizinhos. A tia conta que as brigas eram frequentes. Noel bebia. Nesses momentos as agressões pioravam. Mais de uma vez ela foi ao posto de saúde em busca de remédios para as feridas físicas enquanto amargava as cicatrizes psicológicas:
– Ela não me contava, mas eu sabia no postinho. Uma vez ele foi para cima dela com um facão. Ela segurou e cortou a mão. Lá (no posto de saúde) ela disse que tinha caído. Outra vez ele tentou jogar o carro em cima dela e da menina na frente do mercado. Dessa vez eu disse pra ela: “Vai na polícia e faz um B.O. Ele ainda vai te matar!”.
Agora o alerta parece profecia. Em janeiro Katia tirou férias e saiu da cidade. Combinou com o pai que voltaria assim que conseguisse a demissão do emprego em Blumenau, consultou creches para as crianças e estava se preparando para largar a vida de abuso e sofrimento. Não teve tempo. Na última madrugada de janeiro, Katia Moraes morreu pelas mãos do companheiro, Noel do Espírito Santo, 32 anos, de forma brutal.
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Ele contou à polícia que, após estrangular a mulher, entortou uma colher e usou uma calcinha para fazer uma espécie de torniquete e concluir a asfixia. O corpo foi colocado no porta-malas do carro. No caminho, ele teria desistido da ideia de jogar o corpo da companheira morta no rio e rumou para a delegacia de Indaial, onde se entregou dizendo estar arrependido.
Precisamos falar sobre este assunto
Antes de Neiva e Katia serem mortas em relacionamentos destrutivos, Silvana foi vítima de sua condição de mulher e de estar à margem da sociedade convencional. Garota de programa, teve que enfrentar um cliente que se negou a pagar após usufruir de seu corpo. Quando ela reagiu, ele não admitiu ser confrontado por uma prostituta e tirou a vida de Silvana Batista, 30 anos. No primeiro contato com a polícia, o agressor disse que a mulher tentou assaltá-lo. Depois relatou os outros detalhes.
Silvana, Neiva e Katia são as três mulheres mortas pela violência fruto do preconceito e do machismo nas ruas de Blumenau em 2016. Elas são metade das vítimas de assassinatos ocorridos na cidade este ano – sete, no total. Todos os casos se enquadram no feminicídio, qualificação do crime de homicídio em vigor desde março de 2015 e que, além de agravar a pena do autor, ainda transforma este tipo de assassinato em crime hediondo.
Desde 2011, foram registrados em Blumenau 12* casos em que homens tiraram a vida de suas parceiras motivados por ciúmes após a ocorrência de relacionamentos abusivos e destrutivos, ou por se considerarem superiores a elas.
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A qualificação de feminicídio foi incluída no Código Penal para criar uma especificação para os crimes onde a mulher era vítima exclusivamente pela condição de gênero, explica o delegado da Central de Plantão Policial de Blumenau, Bruno Effori:
– Antes dessa qualificação não existia uma forma de aumentar ou justificar a pena pela condição de gênero. Era possível qualificar como motivo fútil, mas essa ferramenta criou uma hipótese que não gera margem de interpretação quando o assassinato ocorre exclusivamente pela condição de mulher.
Effori também esclarece os dois casos em que ocorre o feminicídio: na situação de violência doméstica – casos de Neiva e Katia – ou no estabelecimento de uma relação de superioridade de gênero – situação de Silvana.
*Dado baseado no acompanhamento feito pelo Santa.
O QUE É FEMINICÍDIO
Qualificação do crime de homicídio incluído no Código Penal em março do ano passado pela lei 13.104/2015. Estabelece que há feminicídio quando o crime ocorrer “contra a mulher por razões da condição de sexo feminino”, que são:
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– Violência doméstica e familiar;
– Menosprezo ou discriminação à condição de mulher.
A pena é de 12 a 30 anos de reclusão e aumenta de um terço até a metade se o crime for praticado:
– Durante a gestação ou nos três primeiros meses após o parto;
– Contra pessoa menor de 14 anos, maior de 60 ou com deficiência;
– Na presença de descendente ou de ascendente da vítima.
A LEI MARIA DA PENHA
– Sancionada em 2006, a Lei Maria da Penha cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Também trata da criação de Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher. Estabelece os crimes cometidos em ocorrência de violência doméstica, assim como o atendimento, a assistência e as medidas de proteção disponíveis às mulheres em situação de risco.
Fonte: Código Penal